O CASACO MÁGICO DA MULHER SÓBRIA
Diziam que essa mulher
tinha sido mãe de família
zelosa dona de casa
exemplar no ofício da costura
amiga das moças mais desejadas
mais bonita que a filha do prefeito
cobiçada até pelos padres
e conhecida dos mascates
que pela vizinhança perambulavam
vendendo de um tudo.
Diziam dessa mulher
nascida não sei onde
que era experimentada
na magia oculta de ler mãos
estrelas e cartas,
diziam que sua visão era
penetrante,
diziam que sua audição
captava o longe,
diziam que se vestia como dama
mas era de fato uma bruxa errante
que viera de um vilarejo antigo
para a alegria dos homens.
As más línguas diziam
que sua força estava
nos pontos cruz dados
no bolso do casaco
sempre posto sobre os ombros.
Diziam que essa mulher
guardava um segredo
costurado ali discreto
no casaco dela inseparável.
Deu-se então a conjuntura
desfavorável do alinhamento
de Júpiter e Urano
numa noite abafada
em que nenhum ser vivo
atrevera aparecer sem máscara
e todos trancaram em casa
o menor sinal de compaixão.
Naquela noite escura
enquanto na penumbra
a mulher acrescia
outro bolso em seu casaco,
o marido a traía
com sua melhor amiga
e os dois filhos a roubaram
para beber com as moças
ardilosas que tramaram
em surdina uma emboscada.
Curioso poder tem as mulheres
sobre os homens bêbedos
e cegos de paixão...
Naquela noite escura
enquanto na penumbra
a mulher acrescia
outro bolso em seu casaco,
a filha do prefeito exigia
do pai esnobe e ausente
que deportasse a invejada,
a bruxa que lia mãos
estrelas e cartas.
O pai, que tinha poder
mas não tinha autoridade,
acatou a vontade da filha
por ser mais cômodo
que a ela dar atenção devida.
Naquela noite escura
enquanto na penumbra
a mulher acrescia
outro bolso em seu casaco,
o padre ouvia das alcoviteiras
bajuladoras da sagrada família
impropérios indignos
destilando seu veneno
sobre o desejo secreto do cúria
e tramaram a má sorte da bruxa.
Naquela noite escura
enquanto na penumbra
a mulher acrescia
outro bolso em seu casaco,
entre os mascates que dormiam
do outro lado da ponte
um se levantou alerta
espantado como sonâmbulo
que acordasse dentro do sonho
e se pôs de prontidão
ao lado de seu cavalo branco.
Naquela noite escura
a mulher que a todos servira
na penumbra mais densa
onde nada não se via
nem sequer uma estrela
nem canto melodioso da cotovia,
vestida com seu casaco
acrescido de outro bolso
a mulher que todos temiam
em silêncio atravessou as ruas,
passou pelo prostíbulo
onde seus filhos bebiam,
passou sobre a sobra
do palacete do prefeito,
passou em frente a porta da igreja
e atravessou a ponte atravessando o rio,
através da penumbra avistou seu caminho
e nos braços do mascate
também um judeu errante
apoiou-se para subir no cavalo
selado com um tipo elegante
de casaco tramado com fios
em fino bordado brancos.
Naquela áspera noite escura
enquanto a penumbra comia
cada qual o mal em seu ódio
desfazia-se a terrível conjuntura
e em melhor situação
a mulher e o mascate
alinhados como Júpiter e Urano
partiram sem deixar rastro,
sem olhar para trás.
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Baltazar Gonçalves