O ARAUTO

Eu posso refazer todos os meus caminhos

em busca das perguntas que ficaram sem respostas.

E como um guardador de livros

eu posso inserir em cada lacuna do meu cérebro

páginas untadas de sangue e lágrimas

do romance que ainda não escrevi.

Eu posso resgatar o menino

que um dia se apaixonou pela primeira professora

e desafiou os dragões do castelo de areia

construídos na praia dos seus sonhos.

Eu posso restaurar as avenidas ornamentadas

de pierrôs e colombinas

por onde desfilavam os homens

que voavam em cavalos de raça e desafiavam os anjos.

Na margem do meu rio

eu posso estender um tapete

e sobre ele colocar o perfume de rosas

que não tive coragem de dar no dia dos namorados,

e ai nascerão outras rosas ao redor dele

e os espinhos farão sangrar do meu coração

o amor que tingirá o rio de vermelho

e transformará o crepúsculo no maior espetáculo da terra.

Posso sim convocar os meus antepassados

para assistir a minha formatura de poeta

e jantar comigo no túmulo de um amigo

que partiu antes da hora.

Posso também harmonizar o movimento dos meus dedos

com o pulsar das tuas veias

para juntos sobrevivermos ao terremoto

das paixões incontidas.

Posso cantar diante de um berço vazio,

pois em algum lugar da minha infância

alguém me fez dormir com canções de ninar.

Posso reconstruir o mundo que ficou lá atrás

e voltar à poesia dos meus oitos anos,

quando os sonhos eram reais e o tempo não existia.

Eu posso falar da angústia sem perder a esperança,

sabendo que a dança não precisa acabar

com o final da música,

pois enquanto o coração bater

sempre haverá um ritmo para alegrar a vida.

Posso transpor para o meu harém as prostitutas

e despi-las de seus trajes rotineiros,

dando-lhes em troca novos vestidos,

os quais só poderão ser vistos por clientes especiais,

ou seja, os poetas.

Posso me embriagar com o perfume do teu corpo

para sair aos tropeços nas tuas avenidas sinuosas

e cair no fosso onde as paixões se misturam

para dar sentido a vida.

Eu posso transpor o limite da fantasia

para trazer de volta o cheiro da terra molhada,

o aroma das flores fecundadas pelas abelhas

e o perfume paradisíaco dos cajueiros floridos.

Posso juntar-me aos super-heróis da minha infância

para erguer uma barricada

a me separar do mundo dos adultos

obscurecidos por suas verdades e por seus deuses de papel.

A mim, mísero mortal,

foi dado o poder de ressuscitar sonhos perdidos,

decifrar os enigmas das palavras

que se escondem nas mentes dos loucos e das crianças.

A Poesia me escolheu como arauto para proclamar a paz,

cantar o amor e desafiar os ditadores;

para isso colocou à minha disposição

um exército de centauros,

ciclopes,

fadas e feiticeiras,

e também um escudeiro

para que eu não me julgasse um deus.

Posto isso, eu me juntarei com os que amam a noite

e dormem nas ruas

porque os seus instantes são breves

e não se atormentam com a esperança

nem se iludem com além.

Posso tudo naquilo que me convém,

desde que não ouse violentar a harmonia do universo

com rezas e ervas daninhas

que florescem no coração dos ingênuos.

Posso inverter o tempo para colher o momento exato

em que se deu o big-bem

e descobrir a essência que deu origem aos sonhos.

Mas também como arauto do reino das palavras

eu tenho a obrigação de vos anunciar a guerra,

sem a qual a paz não teria nenhum valor.

No mais, posso deitar-me na rede dos meus sonhos

e adormecer em paz.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 27/03/2019
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