cão sem dono
voltei o mesmo
ainda o mesmo
ainda com medo do lado de fora
voltei andando e cansado de tanto mourejar
voltei porque os caminhos passam, passaram, e eu preciso continuar
e continuo...
continuo sempre com sono
um cão sem dono
abanando o rabo pra quem passar
as orelhas murchas de um cão que não assusta e mal sabe ladrar
late, só de vez em quando, mas não sabe brigar
toma a rua incerto, um cão velho e já meio cego
com o olfato a lhe guiar
um cão sem dono curtindo a brisa
continuo um cão-humano
cão sem dono numa rua fétida --resquícios de uma festa
e agora, em mangas de camisa, pois é preciso impressionar
alguém gritou meu nome, me puxaram pela camisa
um alguém que nem me conhecia e que também eu o desconhecia
mas que o meu nome sabia gritar como nunca antes ninguém ousou na vida
essas coincidências de nomes comuns até me fazem arrepiar
e a puxada, que quase me rasga a camisa e alma, foi uma senhora com pressa de passar
sarjetas, ruas, casas, garis, fachadas, caretas, uma bituca de cigarro ainda acessa,
e dessa eu tive que desviar
a carantonha de um caminhão pipa
apita, apita
desviei de um jato de água fria e do monstro de ferro que ia me esmagar
tropecei na guia e um poste veio me amparar
agarrei-o, como quem se agarra à vida
uma voz me censura "quer morrer"
e eu digo que não, não ainda
prefiro uma morte menos vulgar
uma morte de cão sem dono e sem guia
grunhindo baixo, embaixo de uma sombra
o olhar censurando os passantes, outros cães sem dono
continuo com sono, tanto sono
deixem-me descansar