cão sem dono

voltei o mesmo

ainda o mesmo

ainda com medo do lado de fora

voltei andando e cansado de tanto mourejar

voltei porque os caminhos passam, passaram, e eu preciso continuar

e continuo...

continuo sempre com sono

um cão sem dono

abanando o rabo pra quem passar

as orelhas murchas de um cão que não assusta e mal sabe ladrar

late, só de vez em quando, mas não sabe brigar

toma a rua incerto, um cão velho e já meio cego

com o olfato a lhe guiar

um cão sem dono curtindo a brisa

continuo um cão-humano

cão sem dono numa rua fétida --resquícios de uma festa

e agora, em mangas de camisa, pois é preciso impressionar

alguém gritou meu nome, me puxaram pela camisa

um alguém que nem me conhecia e que também eu o desconhecia

mas que o meu nome sabia gritar como nunca antes ninguém ousou na vida

essas coincidências de nomes comuns até me fazem arrepiar

e a puxada, que quase me rasga a camisa e alma, foi uma senhora com pressa de passar

sarjetas, ruas, casas, garis, fachadas, caretas, uma bituca de cigarro ainda acessa,

e dessa eu tive que desviar

a carantonha de um caminhão pipa

apita, apita

desviei de um jato de água fria e do monstro de ferro que ia me esmagar

tropecei na guia e um poste veio me amparar

agarrei-o, como quem se agarra à vida

uma voz me censura "quer morrer"

e eu digo que não, não ainda

prefiro uma morte menos vulgar

uma morte de cão sem dono e sem guia

grunhindo baixo, embaixo de uma sombra

o olhar censurando os passantes, outros cães sem dono

continuo com sono, tanto sono

deixem-me descansar

Luiz Eduardo Ferreira
Enviado por Luiz Eduardo Ferreira em 08/08/2019
Código do texto: T6715074
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