MATINÊ

fiz questão de botar aquele filme de novo,

aquele que assistimos umas dezoito vezes, se não mefalha a memória.

rimos tanto agora quanto antes no entanto agora havia alguma dor

que não sabemos qual nem onde doía mas que ali estava

mesmo que puséssemos almofadas debaixo do corpo

vi as cenas curvadas refletidas nos teus olhos de adolescente tardio

torcendo, como se não conhecesse o final, para que a donzela matasse o dragão

e salvasse o príncipe, moderno, que além de míope, tinha síndrome do pânico

não tinha cavalo e tampouco era belo, provando que os opostos se atraem

e que mais vale um coração em chamas do que a beleza fria de mármore

as pipocas esfriaram e o refresco preparado derramou-se sobre o tapete

pois nada havia de mais saboroso do que aquela tarde de um dia qualquer

passada na companhia de alguém que poderia ser primo ou irmão mas era

muito mais que isso

era um amigo de tanto tempo que tal amizade precedia a primeira era geológica

e, pela lógica, trazia muito mais no sangue de mim do que aqueles que nasceram

do mesmo código genético e que me permaneciam tão estranhos como se meus parentes

fossem os escorpiões

enfim, as horas custaram a passar como se cada segundo valesse por meio e antes do

anoitecer poderíamos ter reprisado o filme mais umas cinco vezes sem que o tempo se

desse conta

e deu-se conta quando reassumiu o trono, clamando para si a proteção do escudo do céu negro, cravado de estrelas de aço, pesado como granito, tal qual a lápide de algum monarca anglo-saxão

às seis em ponto juntamos os copos e acendemos as luzes; àquela hora já não havia pombos para as pipocas então as jogamos no cesto da cozinha

e rimos do fato de que não me lembro agora

me despedi do meu amigo com o velho tapinha nas costas de quem tem a certeza de que verá a pessoa novamente em breve

e esse foi o meu errro, de julgar saber e controlar tudo ao meu redor com o controle remoto da alma e a rédea curta do coração

hesitei em abraçá-lo, nunca mais o vi.