Carta ao Não-eu

Se sou regido pela arrogância,

Se ataco as bases vinculares,

Se tudo torno de cabeça-para-baixo,

Perdoe-me, não-eu.

Desde o início, turbulento.

Desde a base, violento.

Constituiu-se portanto,

No velho terror.

Não há nome para esta dor,

É apenas terror, puro terror.

Angústia perpétua,

De curso atrofiador.

Vos contamino com podridão,

Para que sintam a repugnância,

Para que engulam a evacuação,

Já que o gozo não é opção.

Não houve metabolização,

Do que vi e do que senti.

Não houve nomeação.

Somente terror, o velho terror.

É tudo silencioso, angustiante.

Não há som na putrefação interior.

Somente a culpa, a velha culpa.

De ocupar o inferior.

"Vós" é "não-eu".

O "não-eu" é assustador.

Torno-me então,

O próprio verme castrador.

Se em mim nada vive,

Seja em tu, seja em vós, seja em nós,

Nada pode, nada é.

Somente o terror, o velho terror.

A cegueira da imaginação,

Impediu-me de criar,

O exercício vão e tolo,

A tepidez em meu olhar.

Em minha Ítaca bombardeada,

A custo do vivenciar,

Sou punido noite e dia.

Atuar e atuar.

A linguagem vira cinzas,

O verbo funde-se à carne,

Torna o mundo e eu um.

O mundo e eu, somente um.

Logos é sangue.

O sangue é negro.

Adultera e desfigura.

Contamina e polui.

Perco aos poucos a batalha.

Apunhalo-me.

Degenero-me

Regrido à tábula.

Torno à base, tudo é ciclo.

E o ciclo é destrutivo.

É de espinhos, de toxicidade.

Um ciclo demoníaco.

Mas o diabo habita dentro,

Do outro lado da neurose.

Pouco a pouco conquista,

O interior já é necrose.

À frente, somente uma curva,

Um retorno à estaca zero.

Que conforme é pisada,

Abre abismos para o inferno.

Não há súplica ou esperança.

Nada peço, nada quero.

É inércia psíquica.

Reminiscência de infância.

Infância desgraçada.

"Contra-desenvolvimento".

Atalho para a morte.

Potência ao vento.

Luto crônico.

Perdas em sucessão.

Pulsa, pulsa, pulsa a morte.

Mutila o coração.

Somem todas as palavras.

Toma conta a parte escura.

Resistência vira pó.

Torna tudo repetição.

Da repetição.

Da repetição.

Da repetição.

Da repetição.

Rafael Gonçalves
Enviado por Rafael Gonçalves em 28/01/2020
Reeditado em 28/01/2020
Código do texto: T6852855
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