CONTO DO PRIVILÉGIO

As mais longínquas lembranças que Simon tem de sua infância são de imagens disformes. Ele contava quatro anos; e era a primeira vez que mudava de cidade. Quantas vezes tentou, sem êxito, ir mais fundo em suas memórias. As imagens que via: um borrão azul, da cor à cor do caminhão de mudanças, seu tio o motorista e, o pão com algo no meio que lanchou durante a viagem. Pensava que a vida começava aos quatro anos de idade, no entanto, antes não poderia ter vivido sem sua razão.

Quem pensa que razão é tudo, nada sabe. O fato é que nossa racionalidade não nos vem feita do ventre de nossas genitoras. Nele todos os seres que ali se desenvolvem não precisam decidir por si (essa luta não mais eles a pertence). A eles, tudo lhes é suprido junto a vida que é seu presente sagrado. Foi nessa mesma época quando aconteceu de ele tentar matar um gatinho. Não se recorda do dia; e sempre o acaba quando lembra desse acontecido, não sabendo como... nem por que fez aquilo. Um filhotinho indefeso que encontrou embaixo do tanque de lavar roupas. Sempre que a memória resgata tal feito Simon pensa que foi uma brincadeira de muito mau gosto. Qual criança que, com apenas quatro anos, teria a capacidade de arquitetar a morte de um animalzinho daqueles! Sabe que cada pedra que foi jogada no bichinho levava com ela um prazer de uma brincadeira mais inocente que indecente. Não conseguia entender porque o gato estava sem fôlego. "Acaso é ele que tem à ficar pegando pedras e se desdobrando para achar, embaixo do tanque; um animal arredio e fujão", se questionava. Se o gato viveu não sabe, sabe que nunca mais o viu por perto de sua casa.

Aos seis anos houve seu divisor de águas; foi a vez do xixi nas calças. Lembra até hoje: talvez por ter acontecido muito nas brincadeiras com os amigos... tomou uma quantidade descomunal de água na hora do recreio. Isso fez com que sua pequena bexiga se enchesse em uma velocidade recorde. O mais infeliz dos recordes, e que enfadonha premiação, que desespero de vida para Simon. Pouco antes de soar o derradeiro sinal Simon já não se aguentava. Em vão pediu permissão à professora para ir ao banheiro. Aguentou firme e conseguiu segurar até o sinal tocar; ao escutar o sinal para sair, em vez de procurar o banheiro mais próximo e dar alívio ao seu sofrimento (existe prazer maior que ir ao banheiro quando se têm vontade)... não, não raciocinou dessa forma o rebento, saiu em disparada para sua casa, aliás, sempre corremos para mamãe em horas comuns.

A escola era próxima de sua casa. Conseguiu chegar em casa com as calças secas e o arrependido grande de não ter ido no banheiro da escola, mas ao por os pés do portão para dentro foi vencido pela necessidade do seu corpo. E pôde apreciar em seu interior um misto de vergonha, raiva, desespero e insignificância. Sua mãe não estava em casa, e assim quando ela chegou soube do acontecido mas não disse nada para o filho, no dia seguinte foi na escola teve uma conversa com todos os professores, ela disse para eles, que seu filho tinha problemas na bexiga. Depois desse dia Simon pode desfrutar de uma regalia, de um privilégio que chegava a dar inveja aos coleguinhas; Simon viria ser um semideus. Todos os seus pedidos eram atendidos. Fez do ir ao banheiro seu reino onde tinham muitos tronos para bem o satisfazer.