Sol Noturno

Quem és tu,

que apareces sempre

em minha noite,

obscuro objeto especular?

Tu te pões diante de mim

e és tão visível aos meus olhos,

e tão opaco à minha compreensão!

Eu te reconheço em tantas coisas

tão típicas e nada ímpares.

Tens dois olhos que parecem

denunciar-me a ti

(às vezes),

tens uma boca

que emite sons inteligíveis

(quase sempre),

tens braços e mãos

que me tocam, provocando

impressões de te conhecer,

tens pernas e pés

que, súbito, te levam para longe,

sem que eu ao menos possa começar

a saber quem tu és

em coisas atípicas e singulares.

Quem és tu desde dentro,

desde aquilo que nem sempre se revela

em teus meios de te mostrar?

Mas já que não te consigo entender de imediato,

já que és enigma, charada, interrogação,

desafio onírico e crepuscular,

cujo significado pode me exigir anos

de paciente decifrar

- um Champollion e sua Pedra

num incessante “decifra-me ou te devoro” -

fica por mais tempo em minha órbita

e deixa então que eu te fale

desde dentro de mim mesma,

posto que isto, para mim,

é tão claro quanto suponho

que tu sejas para ti mesmo.

Talvez assim, ouvindo-me falar de mim,

tu mesmo possas me dizer

quanto de mim está em ti

e quanto é medida do abismo

entre o que sou e o que não és.

Assim talvez eu possa ver enfim

uma suficiente transparência

em teus olhares, tuas palavras,

teus gestos, tuas distâncias...

E deixarás de ser

um buraco negro devorador

e te encherás de estrelas,

lúcidos sóis distantes

na eterna noite

que é te encontrar...