Sonho esfarrapado

Sonhei num colchão esfarrapado

que estava em um outro de cetim

era um sonho raro e perfumado

embalado numa cama de marfim

Lindas mantas balançavam na varanda

como fossem bailarinas sobre lãs

e uns raios como ouro costuravam

os tecidos das cortinas das manhãs

No meu rosto não havia rachaduras

que as rugas cavaram com a idade

tinha em mim o feitio de um príncipe

cravejado de riqueza e vaidade

Amantava no meu quarto um encanto

um silêncio profundo e singelo

foi aí que no sonho percebi

que dormia nas riquezas dum castelo

Levantei-me vigoroso e soberano

caminhei lentamente metro a metro

percebi que bengala já não tinha

pois andava nobremente com um cetro

Era um rei... eu era o rei

sob um manto todo estrelado

coroado soberano sertanejo

o sertão tava todo prateado

Reuni assim toda a nobreza

para fazer uma festa soberana

o salão do meu reino balançava

com viola com rabeca e sanfona

Do meu trono eu alegre contemplava

os encantos que no sonho possuía

as belezas das mulheres mais fidalgas

e o luxo que a mim só pertencia

Entre vinhos entre risos fui feliz

tinha fama tinha ouro tinha nome

os banquetes me fizeram esquecer

da canseira da pobreza e da fome

Mandei encher um nobre tanque

com água cristalina e sadia

me banhei de alívio e de paz

me limpei da doída agonia

Fui ao pátio do palácio todo em pedra

onde o sol fumegava meio dia

e de lá eu vi a dama mais bela

parecendo a mais casta poesia

Posto isto o sol abrasou-me o rosto

e travei uma luta de verdade

de um lado o sonho soberano

e do outro a plebeia realidade

Como um arqueiro valoroso

que peleja para se manter a salvo

me lancei como uma flecha certeira

vi na dama o meu amoroso alvo

Como um rei prometi-lhe o meu reino

meus tesouros meu amor e minha guarda

a beldade rosnou manso no meu peito

como fora uma virgem onça parda

Uma valsa veio do alto do castelo

nus fazendo dois amantes bailarinos

ela nobre das beldades das quimeras

e eu rei com meus sonhos nordestinos

O sol quente fagulhante meio dia

me ferio com um raio traiçoeiro

me curvei nos ombros da tal felina

como fez o Jesus lá no madeiro

Na cadeia do delírio fiquei preso

no calor do desejo fui queimado

Com os cravos dos amores eu sangrei

na paixão eu fiquei crucificado

Gaviões dourados sobrevoaram

nossa valsa embalada em bemol

ela linda de princesa ouro e prata

eu de rei coroado pelo sol

De repente todo o céu escureceu

o castelo ficou fosco e tristonho

um trovão estourou pelo o espaço

a rachar o que eu tinha por sonho

Uma bruxa vestida de fumaça

arrancou-me dos braços da beldade

perguntei quem era a megera

respondeu-me "eu sou a realidade"

Soprou nos meus olhos rudes cinzas

quando abri não vi mais o meu reinado

Nem castelo nem princesa e nem príncipe

acordei num colchão esfarrapado.

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 25/07/2020
Reeditado em 25/07/2020
Código do texto: T7016701
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