Eu, pecador, me confesso

Já nem sequer sei o que sou.

Nem sequer sei se quero ser alguma coisa

diferente daquilo que sou.

À parte de nem saber sequer se sou

talvez nem queira ser absolutamente nada.

Prefiro nada ser

e ficar preso em mim nos sonhos

que sonho e que invento.

Passeio pelas calçadas da vida que espreito

sem ver

das janelas do meu sonho feito de quimeras.

No meu quarto, escuro, a que apaguei a luz

que outrora me iluminava

traço linhas indefinidas no espaço da noite

e procuro unir os seus pontos dispersos

unicamente num ponto comum.

Procuro nos mistérios da noite que se cruzam

lá fora, silenciosamente se cruzam

com o bulício das ruas movimentadas,

o real inacessível, eternamente desconhecido.

Misturam-se as coisas da vida que gritam,

idilicamente gritam,

buscando mistérios onde não há mistérios nenhuns.

E o Destino corrói estas coisas da vida

e de nada

e conduz a coisa nenhuma.

Fico vencido.

Vencem-me os ruídos mudos neste quarto

apagado…

e também as linhas imprecisas e indefinidas

que imagino e idealizo

pelas paredes sombrias deste quarto,

onde nem sequer as osgas se aventuram

em lúbricas corridas.

Dentro da minha cabeça sacode-se

o vácuo

e a minha cabeça não pensa senão em nada

e os nervos ferventes à flor da pele

destroem-me a razão por nada já saber pensar.

Esqueço-me.

Estou dividido entre o que sou e não sou

e os ossos do corpo que estalam e rangem dor,

negam-se a ser.

Dentro da minha cabeça que estala de dor

instala-se o esquecimento.

De tudo me esqueço já!

Da sensação que sonho mas não sonho

porque estou acordado

se bem que sonhar também é estar acordado.

Já nem sei se penso alguma coisa que valha a pena pensar.

Estou dividido por fora e por dentro

entre o que penso que penso

e aquilo que já não sei pensar.

Mil sonhos de génios que não fui mas quis ser

estalam-me e abrem ao meio mil cérebros

que tenho em mim,

já podres e inertes de tanto pensar.

Não sou nada. Nunca fui nada. Jamais serei nada

e nada quero ser.

Que sei eu de mim? Nada, absolutamente nada.

E que sabem os outros? Ainda menos que eu

embora muitos pensem que sabem de mim

aquilo que nem sequer eu sei.

Sei que nos manicómios da vida há malucos

muito menos doidos que eu. Doidos que nunca sonham

e são!

E eu nada sou e passo a vida a sonhar.

Mas eu não sou maluco. Serei lunático, talvez…

um lunático sem certezas

nem nenhuma certeza da vida,

porque sonhar coisas lúcidas não é saudável

para um lunático sonhador como eu.

É que o mundo não é dos que sonham

mas dos que nascem para o conquistar

mesmo não sabendo sonhar.

Vou sair pela noite calada depois de acabar este longo

poema a que me propus, e sonhar com tudo

menos em sonhar com ser alguma coisa

diferente daquilo que sou,

ou conquistar o mundo e ser.

Sonhar mistérios e sonhos irrealizáveis. Sonhar em nada

à luz dos fluorescentes néons que incomodam

esta minha forma meio louca de sonhar.

Atravesso a luz oblíqua dos faróis acesos

que cortam o negrume das ruas sórdidas e escuras,

e esventro a podridão da noite

e misturo-me com ela. Para pensar, prefiro

a luz difusa da noite à luz real e ofuscante do dia

e prefiro o ruído surdo dos carros

na noite,

na cidade atropelada por vultos esguios

que dobram as esquinas das ruas que fedem

a fezes e urina das prostitutas e chulos.

Há ruas escondidas e sórdidas, aninhadas e estranguladas

aos pés de prédios velhos quase despedaçados

e feitos em nada. Estas ruas nunca verão a luz do sol

nem ouvirão a voz da gente diferente

da que usualmente aí passa.

Também elas, essas ruas, sonham sonhos diferentes

daquilo que são e não querem ser.

E há alcovas bafientas e húmidas ao cimo

de cada lanço de escadas velhas, podres e esburacadas,

que nunca se atreveram a ter sonhos diferentes.

Escadas que rangem a cada passada

trémula, hesitante,

dos noctívagos vadios e putas de rua que as frequentam.

É à noite que o mundo começa a nascer

e eu vou por aí! Perdido e só, vou por aí.

E sonho tudo e nada ao mesmo tempo.

À porta de cada palácio a mil chaves trancado

sonho um sonho diferente dos sonhos

de quem lá mora. Porque quem lá mora já não precisa

sonhar, pois tem tudo na vida.

Aspiro a ser o dono de cada um desses palácios

onde se sonham sonhos diferentes dos meus.

Aspiro a nada.

Porque o meu sonho não passa de coisa nenhuma.

Mas encanta-me sonhar assim.

Serei sempre o dono de nada, desses palácios

faustosos e velhas mansardas em ruínas

onde também se escondem os ratos da noite

ao romper de cada dia.

Nem sequer Deus se atreveu algum dia

a passar por aqui, pelos escombros destas ruas desertas!...

Deus? Mas eu não creio em Deus!

Às vezes penso que até nem creio em mim

e nem sequer em coisa nenhuma.

Só creio no sol que me aquece, e me abrasa

as ideias, de dia. Porque este vejo-o! E sinto-o!

Prefiro também a noite. Que eu sei que existe,

porque sei dos seus silêncios e segredos e angústias.

A noite com os seus dons de mistérios urdidos

sabe-se lá como e por quem, também é o Deus

em que eu acredito. E a chuva.

Também creio na chuva que me molha e me ensopa

a roupa de pobre que trago vestida

e que o tal Deus, de quem falam, não consegue mudar.

A chuva fria que me penetra até aos ossos

e mos faz doer. Creio no vento que sopra e que oiço

uivar, de raiva, uivar…

e me diz que a noite é gelada sem lume

que me possa aquecer.

E o tal Deus não se importa em me vir aquecer…

Do resto em pouco mais creio, porque todo o resto é nada!

Acordo deste sonho opaco e cinzento

e fica a amargura daquilo que nunca serei.

Mas que me importa ser outro diferente

daquele que sou?

Quantas vezes eu me imaginei o mendigo

encostado ao bordão

implorando uma esmola. Talvez noutra encarnação

tivesse sido o tal mendigo que a cada passo

se cruza comigo nas encruzilhadas da vida.

Talvez eu tenha existido antes de mim

e tivesse sido aquilo que sempre quis ser.

O tal mendigo.

Nem sei que quis ser. Também não quis ser poeta.

Nunca quis ser poeta! Porque ser-se poeta – dizem,

é ser-se um desgraçado.

Mas ser-se poeta não é desejar-se sê-lo

muito menos aprendê-lo nos livros.

Ser-se poeta é nascer-se, sendo-o!

Não nego que me corre nas veias o sangue da poesia

que nunca quis escrever. Porque nunca quis

que alguém soubesse que eu tinha escondido em mim

em qualquer sítio que nem eu conheço,

o dom de escrever.

A quem deixarei eu os meus versos? Ao Mundo!

E que o Mundo os leia e leia neles somente

aquilo que com as palavras eu quis dizer.

Que não procure neles o que neles não há

nem neles está dito,

mas somente aquilo que neles escrevi.

Nada, nos meus versos, se leia o contrário

do que neles deixo expresso. Não se inventem

nas entrelinhas em branco, que não escrevo, o que não há

porque nas entrelinhas eu nunca soube escrever.

Alvaro Giesta
Enviado por Alvaro Giesta em 22/10/2007
Código do texto: T704743
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.