24 HORAS COM LUÍS DE CAMÕES
                                                       (No 4º centenário da morte do Poeta)

                     1

           ENCONTRO

Encontrámo-nos no fundo da noite.
Entre a poeira da memória de quatro séculos
sacudiste o perfil indeciso e avançaste,
disseste-me «Olá!», hesitando como quem espera
uma traição em cada dobra do tempo.

Nada temas, Luís,
do Santo Ofício resta apenas
o suor frio que te corre na fronte.
Dissipa-se a neblina
à medida que damos as mãos.
Calou-se o Adamastor e decidiu chover
as suas grossas lágrimas.
Brados de alerta cortam o medo
de lés a lés.

Dá-me o teu braço, Poeta, e vem.
Os morcegos já desistiram,
os galos já perceberam,
só os lobos ainda desesperam.

As estrelas recolhem-se
inúteis e cansadas.
Os clarins empinam-se no vento.
Por um rasgão na noite um braço irrompe,
um tiro, uma canção,
a manhã, finalmente.


                      2

               A L V A

O Sol foi o último a chegar
entre fogo e sangue
por cima das montanhas.
E viu o povo já levantado
e a cantar.
E viu armas esvaziando o medo
e cravos rubros condensando os gritos.

Abriram-se os portões da liberdade
(e a liberdade são estas raparigas a correr
em direcção a lado nenhum).
Tu estás connosco, Luís,
sinto junto ao meu rosto o hálito dos teus versos.

A Pátria volta a renascer das cinzas
sempre que o povo canta
e avança expulsando a noite.

A canção distribuiu a claridade
pelos nossos passos.
Hoje o Sol não foi necessário
para o supremo esforço de ser dia.


                         3

          À BEIRA - MAR

Postamo-nos aqui junto ao mar
respirando o resfolegar das ondas.
Observamos as rotas para não sei onde,
velas de caravelas a acenar ao longe,
gritos imediatos de gaivotas
como lembranças de velhos náufragos
a arrancar desesperos de espuma.
E, lá no fundo da memória antiga,
o gigante curvado
a plantar ameaças na crista das vagas.
Partem navios
na via
das caravelas,
rumo à canela, ao cânhamo, à pimenta,
deixam montanhas e planuras
desertas de enxadas e de charruas,
abandonadas à fúria invasora
dos cardos e urtigas.

Gamas e Albuquerques,
Spínolas e Kaúlzas
exportam vampiros e tempestades
a troco de amendoins.
Zarpam navios-fantasmas movidos a ódio
com tripulantes arrancados
aos ramos das oliveiras,
colhidos pela raiz ou ceifados rente ao chão,
amordaçados,
arremessados em pesadelos de napalm
contra irmãos de outras águas,
de praias distantes.

Lembras-te, Luís,
do desmoronar de Alcácer-Kibir?
Depois foi o terramoto de Nambuangongo
e, finalmente, em Lussaka, o sol por entre as lágrimas,
ponto final no texto da loucura.

Então o mar tornou-se manso de repente
rafeiro até,
espraiando-se em luz pela areia deserta.
O mar passou a ser regresso,
desembarque de náufragos exaustos
descarregando a saudade de ser povo.

O gigante desmoronou-se, sombra a sombra.
Só resta agora a música das ondas,
a hipnose do sal, as rochas
de sonhos retalhados
e o Sol a espadeirar o nevoeiro.

Os teus versos, Poeta, de novo
respiram.


                        4

                REPASTO

Sentamo-nos a esta mesa junto à porta
entre o sorriso acolhedor do Sol
e o calor com aroma de churrasco.
O vento serve-nos sugestões marinhas,
aperitivos de regiões distantes
que, ao respirarmos, nos enlevam.

Este lugar, Luís, não tem a tradição
ruidosa do «Mal Cozinhado»,
mas muitos artistas aqui aportam
nos intervalos dos seus voos,
dissertando e mastigando
alternativamente.

O fogo, na cozinha,
salpicando faúlhas na salada das conversas,
desperta furiosos paladares.
As armas são, enfim, distribuídas
a tilintar sobre a mesa.
O pão, ainda a respirar de quente,
como esponja viva,
ameaça sorver-nos o apetite.

De súbito, as febras fumegantes
ficam já ao alcance da nossa fome.
Corações de tomate a sangrar picante
chamam-nos à acção.
Uma cebola a gotejar estrelas
cintila, provocante, no fundo do prato.

Eis que entra em cena, altivo, em viatura de barro,
o comandante vinho, pletórico de sangue rubro.
É o momento de atacar!
Lâmina em riste, avante, a batalha começa.


                           5

       VERDES SÃO OS CAMPOS

São homens dobrados
tortos para o chão
fecundando a terra
com as mãos.

Não ouviram falar
do horizonte,
do Sol só conhecem
o chicote de fogo.

Saltam-lhes do gesto
faíscas de trigo
que vão transformar
a canseira em pão.

As pérolas negras
donde a luz escorre
muralhas de braços
as defendem.

Contra as tempestades
de chuva e metralha,
homens enterrados
sem ver os joelhos
com dedos de lama
reconstroem a Pátria.


                         6

               PÔR DO SOL

A noite começa a envolver-nos
perigosamente.
Já os olhos das feras se adivinhavam
a agitar-se ao entardecer.
O Sol desanima e desfalece sobre as águas
num pranto de violetas.

Ecoam escárneos em portões senhoriais,
os cães de guarda uivam cartilhas de ódio,
a fome levanta-se como um lázaro
e arrasta-se de porta em porta.
Abre-se o saco das tempestades,
os trovões sintonizam-se nos vales,
e a calamidade geral
é decretada.
Bandeiras negras tremem de vento
no alto dos montes.

Os homens, porém, não temem a borrasca
e combatem o escuro com chamas nos olhos
e canções penduradas no vento.

Segue em frente, Poeta, os teus versos,
como baionetas,
abrem caminhos pela noite dentro.

                                                                    (1980)
CARLOS DOMINGOS
Enviado por CARLOS DOMINGOS em 12/11/2005
Reeditado em 16/11/2005
Código do texto: T70566