COM AS MESMAS MÃOS
(do meu livro "Lira Casual, 2000)
Com as mesmas mãos
que um dia em súplicas
ergui aos céus pedindo
uma solução para essa vida louca
uma solução para esse mundo doente
uma solução para essa enorme tristeza
esse medo coletivo de agir.
Com as mesmas mãos
que um dia cheia de calos
de tanta enxada, de tanto arado
de tanta pedra, de tanta luta
de tanto escalar montanhas
no ofício de viver
o das vozes e seus clamores
fugindo da morte e seus horrores
fugindo da vida e suas dores
fugindo das sombras - aqui os dias são noites!...
Com as mesmas mãos
que um dia cansadas e trêmulas
sem força e quase sem utilidade
tirei um a um os espinhos que feriam
minha alma - brisa do mar
alma guerreira que mesmo à deriva
não se entrega...
Com as mesmas mãos
que um dia marcadas de estrada
abrindo e fechando porteiras
na lida campeira, laçando sonhos
domando destinos, vencendo a distância
sem rumo - e eu ainda um menino
que nada sabia do curso da vida
com seus rios e precipícios
e suas armadilhas (de morte)...
Com as mesmas mãos
que um dia segurei o aço
da cruel espada e carrasco de mim mesmo,
ria da própria dor na construção do dia
que não podia parar...
e apavorado, zombava da própria morte
e desacreditado, sufocava a própria covardia,
descobri por fim que ainda podia e devia
tentar virar o jogo e dar a volta por cima
e me convenci que aquela seria a hora
que aquele seria o dia,
e me pus a contar nos dedos
quais foram as minhas alegrias
e todas couberam numa só mão.
Transformei o resto de minha vida
numa saga em versos e prosas
e rimei dor com esperança...
e meus dedos maltratados
se redimiram no braço da viola
que eu sempre evitei por crer-me
indigno da poesia, indigno da cantiga
indigno do prazer...
Com as mesmas mãos
que um dia sujas e desprezadas, plantei
e colhi o meu pão
no chão da minha humilhação,
hoje preparo meu descanso
e meu regresso ao chão
pois que sou pó deste chão
chão que o próprio Deus pisou.