ODE AO JOSÉ DO MORRO
(do meu livro "Lira Casual, 2000)
O dia amanhece eufórico lá no morro...
é quando José beija a sua Maria
apanha sua marmita, faz o sinal da cruz
e vai trabalhar.
Maria fica na cama acordada
pensando na vida, na vida que há
do outro lado da sua janela,
no mundo de coisas que ela nem imagina
e que não respeita nem rei nem plebeu,
e onde escreveu e não leu...
José, um homem de fé,
sem dinheiro para o ônibus, vai a pé
e chega atrasado e cansado
e o desconto no salário...
Dá duro dá duro dá o sangue o suor
dá tudo que tem para fazer o seu melhor
mas o patrão é cruel
e nem imagina que o pobre José tem sonhos...
Mas o apito da fábrica avisa (o que o estômago já
sabia), que é hora do almoço e o tempo é curto.
Se apressa se apressa que o relógio tem pressa!
Ele pega a marmita, a comida está fria
É arroz e feijão e batata frita!
É arroz e feijão e batata frita!
Cansado, José pensa na sua Maria
sozinha no barraco na sua rotina...
Não sabe porém, o pobre José
que sua Maria na sua ausência recebe outro
e divide a cama e o amor que jurou
diante de Deus ao pobre José...
O dia tropeça numa viga no chão
O dia se apressa e o apito avisa
E bate o cartão o cansado José
O exausto José, o homem de fé
e lá vai ele de volta ao lar doce lar
para os braços da amada para o descanso
sem saber do abraço ainda quente
do outro que Maria recebe...
Inocente, José não vê o momento
de estar com sua Maria e o passo aperta
passa na venda onde compra fiado
um doce pra sua doce Maria
que está no portão de cara lavada
sorrindo acena chama pelo nome
o seu José que lá vem
com o doce na mão
com o desejo no olhar
ardendo de paixão
e abraça e beija sua Maria
que não é mais pura
que não é só sua, a sua Maria
e a noite se cala no barraco do pobre José...
E nessa noite, o amor se faz
alheio aos crimes e batalhas sangrentas
dos vícios e do mundo violento lá fora
e um fruto é gerado
desse amor compartilhado
e José o homem de fé
renova suas juras de amor eterno
à sua Maria que agora abriga
no ventre o tão esperado rebento...
E a lua é alta e a madrugada é fria
sonham com o futuro José e sua Maria
o pobre José e a adúltera Maria
e a vida segue seu curso torto...
Viver é apenas um ato de ser e estar
em lugar e hora marcados
com suas ilusões e suas dores e suas pedras
e suas surpresas e suas idas e voltas...
O dia amanhece lá no morro
José já está de pé
José o homem de fé
beija a sua Maria e beija o ventre
e conversa com aquele que vem
pega a marmita e sai.
Vai à luta, o pobre José
Nem toma café
e sem dinheiro para o ônibus
todo o trajeto
percorre a pé...
No morro Maria na cama espera...
e a vida segue seu curso torto...