SILÊNCIO SEM PORQUÊ
(do meu livro "Lira Casual, 2000)
A velha máquina de escrever
(que eu reluto em aposentar)
me espreita de cima da mesa
e me cobra um desabafo, um argumento
qualquer que seja pra quebrar o gelo
da nossa relação tão abalada pela falta de tempo,
do nosso silêncio sem porquê...
De repente ela me pergunta se eu me lembro ainda
de um tempo em que havia flores
em meu quintal e o amor morava ao lado
e as tardes eram felizes...
Ela me pergunta se meus antigos ideais
ainda comandam meu coração
e se meus amigos das manhãs saudosas
de poesia numa certa varanda
com seus floridos caramanchões
ainda me visitam ou se telefonam de vez em quando...
Me pergunta se aquele menino velho
nem tão velho nem tão menino,
ainda sonha com um quintal sem muros
e se ainda acredita de coração puro
com um possível encontro dos líderes mundiais
para um churrasco e música num domingo
no Polo Norte ou no Polo Sul...
Me pergunta se me lembro ainda das noites
em que a sós, trocávamos confidências
e éramos cúmplices em nossas histórias
de amor ou de flagrantes do dia-a-dia. Coisas banais...
Me pergunta se ainda me lembro do aroma
do café passado na hora e das horas passadas
em devaneios atravessando noites em reminiscências...
E por fim ela me pergunta se ainda me lembro
das muitas vezes em que de rosto banhado
pelo pranto, andava sem rumo pelas letras
enquanto palavras sem sentido iam saindo
no branco papel que já não me reconhecia
nem decifrava o que eu estava sentindo...
Depois de tantas perguntas ainda sem respostas
pois não sei como responder,
num comovente apelo ela me pede
para que eu abra mais uma vez
as janelas do meu coração e deixe a mágoa sair
e deixe as vibrações azuis da luz entrar,
e deixe o vento revirar as gavetas
do passado e espalhar os velhos papéis
onde deitei minhas queixas e doente de solidão
minha alma aprisionei.
Ela me pede uma trégua com o passado
e uma chance
de reatarmos nossa amizade
certa de que temos ainda muito para conversar,
muito temos ainda para trocar
muito temos ainda pra aprender um com o outro
muito temos ainda que que nos doar...
Afinal, o que tenho a perder?
Sei tanto dela quanto ela de mim.
Fazemos parte do mesmo poema
somos pedras do mesmo caminho
espinhos da mesma flor
braços do mesmo rio...
Me aproximo com cuidado
afinal, são tantos anos sem uma palavra sequer
sem um bom dia, sem um pedido de perdão
sem nem mesmo um desabafo...
Me aproximo com reserva, numa atitude defensiva,
apreensivo, com medo de me emocionar
e ser mal interpretado. Ela ainda pode me interpretar...
Num gesto solene, puxo a cadeira, sento-me
afasto a poeira, acaricio suas teclas,
seu corpo de menina.
Arrisco uma letra qualquer só para fazer a corte
e oficializar definitivamente uma reconciliação
e uma nova promessa de companheirismo
como nos velhos tempos...
Imediatamente sinto vontade de escrever
um poema como nunca escrevi antes.
Senti-me jovem outra vez
e minha alma se encheu de contentamento.
Fiel, a máquina foi colocando palavras
sob meus dedos que confesso ainda trêmulos de emoção,
uma após outra, palavras novas
palavras de louvor
palavras que fizeram o branco papel me reconhecer novamente
que foram tomando forma
num poema testamento
onde me dou inteiro para o amor
para a amizade, para a vida...
E ali ficou gravado, no branco papel
na velha máquina sobre a mesa
a história da minha vida...