Língua afiada

Adoço a língua com melaço

Lubrifico meu verbo

Ludibrio os incautos

E quanto mais tentam me calar mais eu-falo

Cansei de ficar calado no meu canto

Afio meu verbo

E falo, falo, falo...

Falo até o talo

Com a língua em estalos

Enfio até o fundo

Penetro no teu tálamo

De pés descalços e cabelo molhado

Úmido, tungido, tépido

Rasgo o véu e me entranho

Feito lâmina cortando o céu

Lâmina afiada e de dois gumes

Corto para os dois lados

Decepo tabus e arredondo quadrados

Lâmina pontiaguda, forjada ao lume

Que resplandece no fogo, amolece

E enrijece ao penetrar na água

E eu queimo, derreto, ebulo

Revolvo-me no fogo que me forja

E me faço em formas: de seta, de anel, de roda, de curva, de boca, de seios, de bunda

E evanesço, acedo ao teu desejo

Ascendo ao alto ionizado

E de repente paro, plasmo

Caio , nem sei se pra cima ou pra baixo

Não sei se é alto ou baixo

Se o céu está limpo ou nublado

Só sei que ainda falo

Mesmo sem boca e catando palavras em cacos

Me refaço, remodelo meu falar, remoldo minha língua

Meu eu-falo

E disparo

Contra muros, contra medos

Arremeto contra falos

Entro e saio de buracos

Uns escuros, outros úmidos, tantos secos, largos, profundos, rasos

Adoço mais uma vez minha língua no melaço

E, lúbrico, lambuzo-me no lácio

Falo, falo, falo

Luiz Eduardo Ferreira
Enviado por Luiz Eduardo Ferreira em 14/02/2021
Código do texto: T7183916
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