Daemon
Tenho eu cara de príncipe?
Talvez, mas não sou um príncipe desses dos contos dos brancos
Nariz afilado, rosto pálido, cara de tonto
Estou mais pra um príncipe indiano
Vestido com laços, borlas, franjas e um turbante
Todo lasso, com compridos braços, olhar distante
Quase um santo, e digno de ser adorado
Tenho eu cara de santo?
Do pau oco talvez , um santo torto, todo mal engendrado
Sou santo sim mas tenho ainda dívidas a saldar
Tenho dívidas com o céu, com a terra, dívidas que não cabem num único alguidar
Veja, não é só vaidade minha mas a aceitação do meu estado:
Sim, eu quero ser adorado
Posto num andor, alisado, beijado, lambido, apalpado, quero cheirar incenso queimado
Quero meu corpo mergulhado na água todo com fitas coloridas amarrado
Quero sentir o mundo em todos os meus orifícios, dilatados, largos
Quero sentir o pulsar de uma artéria no último instante de vida
Quero sentir o choro do bebê ao ter seus pulmões, no primeiro instante de vida, pelo ar queimados
Cabem em mim o assassinato e o arfar dos amantes
Trago em mim o azedo da fruta verde e o doce do mais doce mel de abelha e também a ferruada do marimbondo
Meu cheiro é de relva amassada e dama-da-noite, exalo perfume de mirra e odor de estrume
Tudo me é lícito e tudo me convém e todas as coisas do mundo me agradam, me entretém
Já disse que sou um santo, ou quase isso, e até mais que isso, e tudo que eu toco santifico
Eu sou o presente beijando o passado, sou seu futuro delirante
Sou um Deus em desagravo, o salmo mal cantando, todos os bezerros imolados em sacrifícios de sangue
Não me leve a mal por parecer grandiloquente, mas é que as verdades têm de ser ditas para todos
Paro o que tem fé e para o que não acredita
Ainda me acha com cara de príncipe?
Talvez eu esteja me transmudando
Me transfigurando numa imagem distorcida, cheia de feridas, um animal errante
E, a partir de agora, serei um viajante
Sem teto, ébrio, sendo chamado por muitos nomes
Sendo expulso das casas, sem nem uma cama de palha, sem casta, sem uma manta sobre os ombros
Seria eu um Deus ainda?
Ou seria eu uma linha que finda no fim de uma sentença mal dita?
Ainda sinto as dores e sabores do mundo entrando-me, arranhando minha garganta
Sinto ainda a vida deblaterar no meu ventre, rasgar minha carne e cobrar de mim verbos e um nome
Eu mastigo a vida e a engulo e dela sinto o seu sabor
Em verdade a vida tem gosto de mel e sangue
E eu a como, degusto cada parte sem olhar o quê, sem fazer exame
Eu fecho as portas da casas para me fartar de manjares
Cubro-me de lama enquanto ouço o peregrino que clama: tende piedade de mim
Espreito enquanto chega um outro e mais outro e outro do outro quem nem é peregrino e nem clama por mim
Aquel’outro me traz oferendas de ouro
E aquele ali, me pede socorro
Ouço-os todos, demovo-os, devoro-lhes os sonhos, devolvo-lhes à autorresponsabilidade
Porque, sabe, sou Deus mas não sou dois, ora pois
E me canso fácil, fácil
E já aqui me vou despedindo
Um Deus que se vai indo, esvaindo
Ei, não se sinta sozinho pois existo conquanto existas comigo
E repita, também, comigo: onde houver dois ou mais reunidos, ali se faz também um ato político e de ecumenismo, pois sois deuses, todos vós; e mais, vinde a mim quando for preciso e vá de retro se não lhe apraz.