Falo baixo pois cansei de gritar

Falo baixo

Sussurro

Sussurro pois é tempo de desagravo

Olhos baixos e tez cerzida

Aonde é que vai dar essa lida?

Tem retrocessos de ambos os lados

E à frente...a incerteza, a não-vida

Ainda assim continuo entre os passantes

Com olhos fixos no chão, vejo as sombras da plebe errante

Que vai, vai, vai, vai em passo claudicante

Projeta sombras sob um sol que se faz nulo

É um sol que não mais aquece um sorriso qualquer num dia útil

Cria sombras pálidas, semi-sombras idênticas

Toda sombra é igual sobre o sol do meio-dia de um dia de trampo (dia de branco?)

Paro de um tranco, espero a minha vez, o meu passe, a minha passabilidade, o meu lugar na viagem

Sou, agora, um passageiro à espera da besta-máquina

Ela se aproxima e nos engole

Como um peixe que engole a prole

E ela nos amassa, amálgama os corpos, mistura suores, junta poros contra vontades próprias

Tornamo-nos num coletivo, um ser único e vivo

Estamos tão próximos que posso sentir os alheios sonhos , os sussurros, um ronco

Os pensamentos são audíveis, com ou sem fones de ouvido

E vou ouvindo os pregões ecoando nas parafusos de metal e me deixando confuso

“olha a água , é duas por dez” “moscou o rapa levou” “esse é original” “o guarda tá vindo”

De outro lado ouço uma pregação, tem um moleque cantando rap enquanto toca o repente que se repete feito uma oração

E eu sinto tudo, aqui dentro, sinto todos, entrando-me pelos orifícios, arranhado a superfície da manhã, esbarrando no meu pensamento

Por um momento estou suspenso pela velocidade

Me fundo com a maquinária de uma quimera de duas cabeças, metálica centopeia

E lá fora, no espremido horizonte, a mente elabora planos de resistência , a fuga perfeita ou só mais uma desistência

Mas, a máquina para e meu corpo ordinário dá-se conta de si

De que meu peito não é de aço, de que tenho braços que pouco alcançam e de que meu passo é curto, retomo meu compasso

Por que o tempo é sempre menos que o dia? passa muito rápido

Mal se pisca e tá tudo alterado: adúltera-se contratos; deixa -se morrer sem ar; nega-se o pão e o circo tá sem palhaço; tá cada vez mais pesado o nosso fardo

A gente não tem tempo nem pra elaborar o luto, um plano

É morte por minuto e lágrima tá secando

E a cada passo eu canso e em meio ao pandemônio me faço de manso

Entre respiros e soluços, reluto

Finjo que não é luto o sal derramado dos olhos

Finjo que ainda luto, que ainda avanço

Mas em mim cresce o ódio, não se iludam com a cara de ócio

É um ódio misturado com banzo e que não encontra banco de praça pra refletir, pra um descanso

Por fim, minha sombra acaba por se misturar com a coletiva sombra-dor, a inércia me faz paralisar

Soltei a mão de todo mundo e estou pronto para não mais tentar

Porque se o poço não tem fundo, logo a queda nunca há de findar

E a sensação da queda me faz pensar estar suspenso no ar

Caio, caio, caio e tão grande é o buraco que fica difícil de respirar

Sussurro e falo baixo pois o ar começa a me faltar

Luiz Eduardo Ferreira
Enviado por Luiz Eduardo Ferreira em 14/07/2021
Reeditado em 15/07/2021
Código do texto: T7299520
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