LÁPIS-LAZÚLI (3)

DECIFRAR

Decifrar o frio que nos encobre

de desespero...

Decifrar o peso

que nos carrega de insônia...

Decifrar a viagem

que nos transporta para o terror...

Decifrar as paredes

que emparedam o ar...

Decifrar a substância

que consubstancia o veneno...

Decifrar e esperar da libertação

um aceno...

PRECIPITAÇÃO

Antes o vento era luz.

Hoje eu percebo a assinatura

da palavra de desconsideração.

Eu dirijo e descontrolo minha direção.

A vitória foi da frase áspera,

e meus braços em precipitação.

Antes o vento era calmo,

da voz parecia emergir um salmo.

Antes o vento não era vão,

hoje a palavra de desconsideração.

Desperdícios impostos

a golpes certeiros.

A glória mentida, a farsa de cada um,

vigiando-me nos postos.

Licor de sangue oferecido

à força da ironia.

Vidros e estilhaços de pele,

hoje o crime enforcando os meus destroços.

Antes o vento e aquela festa.

Dirigido para mim está a carga das vítimas

condecoradas com medalhas de sangue.

Hasteada a bandeira

de papel e negra.

Desperdícios da ordem,

e qual o vento que reluz?

Não... apenas se ilumina

uma cruz.

Devoraram meu desperdício.

Depois ouvirei o vento a gemer,

e estarei na escuridão,

na ponte de um caminho,

a tremer...

VLADIMIR MAIAKOVSKI (HOMENAGEM)

_ O tiro me fez um lago no peito.

Que não reste um coração ingrato

sob esta roseira.

Este tambor fantasma

que eu carrego.

Esta excitação ligeira,

este esquecer-me na lajota doméstica.

Que o mago da revolução

exista sob uma clareira.

Esta que não é uma simples afirmação ligeira.

Que seja o guerrilheiro,

preparando a vida pelas costeiras.

Eu escrevo um reparo

em favor da sétima liberdade

dos sóis reticentes.

Poeta não é nome cigano

nem uma exclamação imprecisa,

não é simplesmente o vazio da rua,

é fundamento popular.

Ter um lar nessas visitas sem traidores.

O segredo de se suicidar pelas flores.

O meu sentimento ninguém vende na praça matriz

onde giram os imbecis,

na praça de giz da corrupção.

A energia nasce dentre um poema e um pasto de amargura.

Eu leio de rastos

na cortina da manhã

o soturno do meu obscuro ser em insegurança.

As curvas sinuosas das estepes,

e o meu solo de magia ferindo

de realidade os devaneios empacotados.

Eu respiro aquele poema

que do peixe traz a tradição do pescador enrodilhado.

Eu declaro o bobo da corte

um assassino insubmisso de meu próprio reinado.

Isso tudo eu vivo aqui dentro, sim,

nessa casa covarde e estrangeira

que me criou pusilânime.

Mas o meu signo de morte trarei impresso,

mesmo que ninguém sinta o meu companheiro calor,

o meu derradeiro tiro.

O DEVORADO FOGO...

Eu devoro o fogo, insensato...

Nem mais ínfimo brilho me considera.

Nem sou capaz de obter a bandeira branca,

o descanso em um grato campo de flores.

Diga-me que é estúpido devorar fogo.

Diga-me, mas, mesmo assim, devoro...

E o fogo entra pelos meus poros, agita a estupidez.

Diga-me com que intenção eu devoro fogo.

Eu estou impreciso em meu dizer.

Todos prepararam o meu prato,

o fogo agitado e tresloucado que devoro porcamente,

a babar raios pelos cantos da boca queimada.

E tudo fere o estômago, fervilha a pele.

O fogo-extra do mundo

entra-me,

aguçando os sentidos do sofrimento.

A dor da estrela não desenvolvida... seu azul fraco,

sem tonalidade... e o fogo: alimento estúpido

que só faz viver na opressão dos nervos,

nervos vendendo a vida aos gritos leiloeiros da neurose.

Eu devoro as pedras, sinto o dente quebrar,

e o sangue... e o sangue.

Eu devoro o fogo, sinto o dente derreter,

o relance de desespero derreter,

e a lava fervente incendiando os cabelos.

Fogo! Fogo pelas ventas, pelas pontas do coração,

tocha de um corpo encurralado...

Fogo! Queimando a traquéia, espalhando-se

pavoroso, pavorosamente pela idéia...

É o veneno! _ dirá o médico...

É o demônio! – dirá o religioso...

É o egocêntrico! – dirá o psicólogo...

Não...Sim?! Só sei que devoro fogo

mais que qualquer homem de circo,

e depois vou expelindo-o na discórdia

e queimando os ossos da minha carcaça.

Só sei que devoro fogo; será que se trata de um bobo da corte

agonizando para a platéia asquerosa?!

Eu devoro fogo... S.O.S... Água! Água!

Água! Água! Água!...

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005