(CIGARREIRA) LÁPIS-LAZÚLI -4

APENAS PARA OS SONHADORES

I

Haverá uma satisfação para o sonhador:

homem do chorar...

Nossas cantigas pesadas, sem animação,

terão, eu sei, que reinos da vida conquistar.

Digo para aquele da mesma profissão,

sem caminho, sem amigos pra se animar...

Ouça aquele triste como a desilusão,

andarilho lento e cabisbaixo:

_ Lutaremos juntos pelo nosso lugar!

As aves que voam pelo céu de solidão

oferecem-nos esperanças de alcançar

as vastas colinas onde se pode cantar.

Aedos! nosso pensamento terá repercussão

por todas as injustiças de nosso lugar.

II

Pela janela de meu quarto, dentro de minha lassidão,

vejo a juventude pelo arco-íris sem nos abraçar,

pois o egoísmo, a fantasia desse mundo, é alienação,

mas o poder humano atrai e nos faz falsamente sonhar.

E os renegados? Os que protestam? Os que lutam,

para onde irão?

Para os cárceres... os cemitérios... os asfaltos...

A verdade é que sonhadores e poetas só se crucificarão

desconhecidos, atirados em dias infaustos.

E prosseguiremos a suplicar o ânimo.

Nós, sem ambições, da mesma classe!

A classe dos que sonham com o pão

não é classe dos vaidosos, hipócritas de enojar,

mas é a classe dos que necessitam

da sonora e grande voz da revolução,

necessitam de todas as sabedorias para vencer e se elevar.

OPERAÇÃO

Operas o coração

nas óperas em confusão

que desorientam

o teu ritmo.

Deveras estás sôfrego

com o fôlego a faltar,

e sempre operador,

de amarga condição,

teme o que fazer,

operas a mente

a tua condição

baixa, tacanha,

e as óperas estranhas

que desorientam

o fôlego tacanho

de estranha atitude.

É mais do que operação

aritmética de

amarga condição,

tudo a desorientar

sem verbo, com o ritmo

do domínio covarde.

Eu opero

o bolero das classes

dentro de mim.

Não conseguir controlar

a terrível condição,

o dia-a-dia de operação

sem canção, opero

a violência de minhas

atitudes no que não quero.

Tu operas, também,

o teu coração

na mesma luta de baixa condição.

É a operação do restrito,

do caminho e do granito.

É a cirurgia do ódio

que implica agonia,

quando se obriga o ódio no dia

e mais a violência de um baixa

condição

sufocada pelo espaço do teatro coração.

CAMA DE GATO

Quando cai a gota d’água,

só sente a flor sem ventre,

é a cama de gato

dos gestos grotescos.

Arabescos dos flancos passados,

minha pele sem contato,

o triste aparato

das armas cravadas em sangue.

Não tenho cama nem tijolo

quando cai a gota d’água,

não tenho encanto.

Não tens certeza

desse passo sôfrego,

todas as incertezas são maiores.

Viver partido em dois,

invertebrado nas sombras.

É a minha recaída,

de vida em vida,

neste fim de vida.

Situo o brusco rumorejar.

O escalpelo se mantém fixo,

prefixo do nada,

sufixo decaído da mudez.

Enquanto o xadrez prossegue

e tudo o que negue.

Quando cai a gota d’água

a chaga dos dias

se entrega ao choro.

Seria maravilhoso então

nascer de novo,

esquecido de tudo.

LABIRINTO

O mundo dentro de mim

é uma dúvida sem fim.

Valha-me a fé

e todos os que dificilmente estão ainda de pé.

E o que é estar de pé?

Qual é a gravidade que nos concebe?

Em honra de quem se estabelece o juízo?

Piso no chão e me desequilibro.

É ainda possível sobreviver no antro?

Quantos já imaginaram a porta da redenção?

O labirinto está solto no coração,

e o coração preso faz a sua escolta.

Sob o que viveremos neste labirinto?

O cinto da insegurança teima

em sua aliança com o recinto

onde se muge a perda.

Perda que suspira sereias

nas batalhas insensatas.

Onde estar atado nesse verbo?

Onde estar sem compromisso,

livre dos gelos e dos riscos fatais?

Agora os efeitos do labirinto me assombram.

Onde estarei nesta mescla de gente

que se aglomera e ameaça como uma vírgula?

O labirinto não nos acostuma.

Quereria acordar e ouvir

a cigarra do bosque verdejante

em meio à bruma.

VÉRTICE

Estar no vértice

e um oceano à frente.

É o desafio da vida,

é o bafo da onda...

Estar no vértice,

no cubo da sombra

a chorar por certo.

Um oceano por todos os lados

a mostrar horizontes de esperanças.

No vértice do navio estar

no cubo do convés

a chorar através

da sombra do pavor.

O segredo da vida.

O que virá após...?!

Carregando os prós e os contras

da ofensa feroz.

E o vértice para se equilibrar

no bico do quadrado,

no pico da discórdia.

Estar no vértice e não nos planos,

apenas a bravura dos oceanos.

Carregar cifras,

encontrar leitos

onde adoecidos cantam a despedida da vida.

Estar no vértice

a agonizar por certo

na paz de todos os desertos.

Cansado da asneira de sofrer mais um pouco

e carregar o fardo de louco.

Estar no vértice

a procurar planos

no cilindro do medo,

a se afundar nos oceanos

do mistério pós-morte.

E ainda contar com a sorte,

e ainda contar com a sorte...

ALÍVIO

Cântico de alívio,

de nova composição no arbusto da flor.

É o lírio esvoaçante

da alfombra dourada.

É o passo seguinte da escalada.

Uma nova manhã...

O espelho do horizonte

na flor do dia primaveril.

Os novos estandartes dos sonhos.

Rever os brindes,

o acontecimento em festa.

E o grande alívio a suspirar

fogueiras pela madrugada e

a despertar sonoros

cânticos de festas benditas.

O novo rumorejar de atitudes.

A nova brisa aconchegante

da sombra em luz.

O alívio infinito de uma paz verdadeira.

UMA ESTRADA

Uma estrada é curta

quando se avizinha ao longe a florada dos sonhos.

Querer chegar além,

redescobrir-se então em flores.

Novas miragens

que avizinham o esplendor.

Do querer, do vencer,

em novas esferas

de pleitos infalíveis.

A aurora resplandecente

do encontrar-se no feito.

E rever o destino do ontem no acontecer

do futuro em ebulição.

Nova lição

do deleite.

Do reverdecer o paraíso em dias.

FRIO INTENSO

É o frio intenso

de uma alma sem guarida.

É o espetacular fascínio de uma

flor bem fria.

É recostar-se no ontem.

No ambíguo retroceder

de atitudes em medos.

É o frio intenso

que consome almas.

É repassar a agonia

ao preço de um dia.

É estar a referir

auroras em perigos

de eternidade.

É o frio intenso

a congelar o medo que vem...

ANIVERSÁRIO DOS QUE NASCEM (DE FATO)

Brindaram-se as esperanças inocentes.

Quem teve esta coragem inusitada?

Esta seiva de fertilidade talvez

não seja somente inocência.

É sim o vigor da verdade no vagar das gentes.

O brinde foi muito além de um gesto espontâneo.

O tilintar e o acordo tácito.

A vida como uma forma de integração.

Ambulâncias passavam silenciosas,

iam cuidar das doenças e dos vírus velozes,

das pessoas que pensam que trabalham, mas são ociosas,

dos bem distintos que pensam ser finos, sendo atrozes.

E, em meio à sirene avassaladora,

contrastando com rostos serenos ou desejos perenes,

alguns brindaram as esperanças inocentes.

Elas serão montanhas e serão braços,

e elas se confraternizarão com o tempo,

depois, serão mais que um monumento.

Quem não seguirá o rastro que vai além da insinuação?

As esperanças inocentes se deparam com o mundo,

mas não vêem as escadarias, nem poeiras parasitas.

As esperanças inocentes são de todos,

basta a efervescente disposição da clareza,

da clareza límpida de que piamente

sabe se renovar e nunca se assassinar.

Outrora se mataram as vítimas e hoje

se perseguem os pássaros, mas, amanhã, a experiência

construirá um forte: os raios serão franjas,

os olhos frascos de luz.

No forte... nele saberão respirar os sufocados,

focalizando os cata-ventos de nostalgias inteiras.

O mais suave a que se cansa será o perfume das goiabeiras.

Ora será... será... O momento é que se brinde, este será,

porque só sendo e vivendo este ser é que podemos dizer:

_ Será... E só não sendo homem de cera

é que podemos ser e ver a dificuldade e a esperança

e a angústia e o esplendor de querer ser o homem do será.

Brindam-se as esperanças inocentes.

Este aniversário não é adverso a ninguém,

ele é fértil e está de viagem no trem de versos

e de trabalhos,

e sentido todas as paisagens,

amadurecendo as esperanças nos trilhos,

nas savanas das infâncias, nas visões vastíssimas de tudo

que se congrega e se desvenda. Aniversariam nos berçários

os grandes homens... Dispersam no infinito e se incluem

no mesmo nascimento,

ampliam os berçários e aumentam

as alianças e os brindes...

O ASSASSINO E SUA PROCURA

Alguém vestiu a luva de

um assassino.

A parreira de uva era

doce.

Como se a vida também

não fosse,

também não fosse.

Mas alguém tão impunemente

vestiu a luva dos coveiros

e passou da obrigação

à obrigação,

da improvisação ao estudo

das táticas encobertas.

Como se a vida jamais fosse

desperta,

jamais fosse desperta.

O VÔO DE UMA AVE NA AVENIDA

Avenida nutrida

dentro de nós.

Era mais que tudo,

mais que todos

os nossos desesperados

ascendentes.

Avenida nutrida pelo braseiro

que me faz esquecer.

Aprendi a ver o rústico

em meio do complexo som

acústico.

Acrobacias em meio ao centro

e a gravidade dos jogos de

azar,

apostar na roleta,

a próxima faceta da personalidade.

Avenida...as nossas façanhas,

quando uma unha venenosa nos arranha.

Avenida...

nesta ave soube que o meu único vôo estava preso,

apesar da falsidade dos demais.

Avenida, eu estava no cais,

fenecendo além da desesperança,

quando a esperança trouxe a

memória dos cânticos,

levando a memória dos cárceres,

quando em um só sentido

a ave redobrou a sua vida,

achando, num impulso, a justificação

de seu vôo.

Os antepassados acordaram e,

mesmo nas trevas, souberam sorrir.

Eu e você nos nutrimos de desafio,

quando a face compreendeu, quando

sorriu.

Nós nos nutrimos de carência e de satisfação

ao mesmo tempo.

Como é grande a significação

deste sofrimento.

E, na sua conseqüência, a esperança

se faz presente a cantarolar as sonatas do alívio para que se prossiga.

O JOGO DE CHAVES

As cadeias se somam.

Múltiplos reconhecimentos,

mãos se amesquinham

em busca da chave de ouro.

E a chave não passa do ouro

não do ouro.

As cadeias se somam

e as facas querem

cortar o couro.

E o couro não de couro.

As cadeias somam

homem a homem,

e a inveja não é

a única meretriz.

As cadeias somam-se

e aqui está mais

um infeliz.

A chave de ouro

não é a que abre.

Vocês não conhecem

este sabre.

Enganam-se os que pensam

que a chave abre.

Mas as mãos se amesquinham,

querem possuí-la.

E as cadeias formam

vilas

impassíveis e frias,

estátuas vigorosas.

As cadeias se somam

e o homem se soma

com a chave.

A chave não abre.

Nada mais é

do que um ouro que

ilude,

um ouro deitando sombras

e obscuridades nas costas

da juventude.

As chaves se somam,

somando a inconseqüência

da vã ilusão.

A chave que cultua a aparência

na aparente superfície do nada.

Vocês não conhecem a conseqüência?

Não conhecem a conseqüência?

O ouro da chave cega

e a cadeia carrega

mais um escravo

nos funerais sombrios.

Desesperadamente, demente, um visionário viu

que a chave, que a chave... não abriu.

Outros, vendo isto inconscientemente,

caíram no vazio.

RELATO DE UMA ESTRELA QUE PASSOU PELA TERRA

A estrela que passava na terra

guardava sabe o quê do futuro...

Uma porta azulada de brumas

ou uma fada radiante de plumas?

Era noite,

e aquele azul não era da estrela,

apenas era uma casa comercial,

um luminoso distante.

Mas como um luminoso engana!

Olhos que prescrevem nesta cabana,

não que eu apenas

queria ver uma estrela

passeando nos bosques.

O azul que eu via distante

podia trazer o último aviso

da nostalgia.

Em que penumbra encontrar um coração?

Na cabana, tudo tão restrito,

a tarde improvisa mais um covarde,

a lua tão distante quando eu grito,

e a fraqueza dos escombros.

Lá fora tantos estrondos.

Aquele espaço que trazia

o passo da estrela

na noite dos desenganos.

Sentia nos peitos comprimidos

a sublevação dos cabanos.

A quem foi designada tanta sombra?

Justamente a quem está aqui,

agarrando-se no elástico da sobrevivência.

Não tenho nenhuma esmola a oferecer.

As luzes que eu pensei que fossem

estrelas

são falsas luzes de casas comerciais.

E nas sombras dos que pedem na calçada

eu vi o mundo circular, faminto.

Surge, então, um guarda

com coldre e com um cinto.

Ele me acusa porque eu sinto,

me prende se tento espalhar

a tentativa dos que ao longe gritam extáticos.

Surge então um fanático,

as gargalhadas nos fundos das casas comerciais,

uma mocinha passa bem vestida,

outro rouba um cobre na esquina

onde a fome trabalha de vigia.

Nos calçadões, onde os homens objetos

se misturam na insônia do consumo,

a praça é o centro dos rumos,

a cruz brilhante que falsificou os deuses,

as botas arbitrárias atoladas

na lama, características dos pisos acarpetados

na lama de sangue dos pisados encarcerados.

E a cruz brilhante se renova a

explodir novas dinamites. Todo sacrifício em nome dos requintes.

Toda a crucificação dos peregrinos que se cegam nos brilhos estéreis.

PINGO DE LUZ DO MUNDO

Mundo de tantas indecisões.

Pobre mundo

de poucas direções.

Venha mundo!

ouvir meu grandioso amanhecer.

Grito mundo!

E por certo vencerei.

Pranto e mundo:

resistirá meu iludir?!

Vivo meditabundo

e ainda penso em vencer.

Na verdade serei trabalhador

destinado a chorar e sorrir...

Raça e taça

hão de brilhar em minha vida,

apesar dos círios dos funerais

e a solidão dos meus ideais.

Raça e taça

que a falsa ilusão do dia construiu.

_ Vamos procurar a aurora

naquele pingo de luz?

_ Sim... tenho ainda algum ânimo,

por muitos devaneios já muito pervaguei

e, hoje, ainda por pouco, estou triste,

na mesma tristeza dos tempos desesperados;

porém, já sei que não é inatingível

aquele resplandecente pingo de luz.

CASA DA POBREZA

De minha janela, janela de dentro de mim,

desta casinha pobre do meu interior,

avisto o crucifixo,

minha vida pregada

a pregos cruéis

fabricados na falsidade.

De minha janela

quantas vezes vejo os mendigos,

e são os mesmos coitados

que se dirigem à casa,

vão comer os limbos, os bolores, o sal

dos mais constantes e fortes sofrimentos.

São meus sentimentos

estes mendigos.

São, sim!

Seguem extáticos, confinados, eternamente confinados,

na mesma corrente que prende os fanáticos,

no mesmo desabar que arrancam as gotas,

gotas salgadas e tão poéticas.

Tudo mesmo a conflitar idéias ecléticas.

Desta contemplação impaciente

vejo, assim cansado, encolhido subversivo nervo

na escuridão de suas cavernas.

Ele está no desespero, ouçam...

Grita aflito, contorce-se, louco!

Tenta libertar-se de algo que o criou,

de um monstro terrivelmente oculto

em sua essência, essência de nervo,

órgão sobrenatural, covarde, prostituta do mal.

Esta casa de pobreza, da pobreza,

estas paredes, estes cantos fúnebres

e agitados ao transpirar da noite.

Oh... contemplação lúgubre

desta ridícula casa, humorística desgraça,

casebre à luz de lampião,

lampião se apagando, pagando a prestação de todos os deveres.

Oh... covardia que está a pagar o aluguel da demência

com todos os móveis podres, seus valores decaídos.

A mais alta montanha do cérebro

ainda está desabitada. Lá existem as neves,

um silêncio melancólico, e minhas forças não atingiram

aquele ápice... Está desabitado.

Lá tenho a completa emoção do prazer,

que vive pela força da felicidade.

Desta janela, onde contemplo loucamente

todo esse correr terrível de sangue, de células,

sofro no ínfimo lugar

em que me encontro a me sugar.

Nesta casinha morta, que não falta muito a desabar,

avisto a montanha que precisa ser povoada

pela aliança das luzes. Aviso tristemente

e aviso numa súplica os povoadores da colonização

da perseverança.

CIGARREIRA LÁPIS-LAZULI

Do sol da história

nasce uma esperança

como presa numa cigarreira azul.

É o vento da esperança de vitória

de conseguir refulgir num

êxtase total, o conhecer-se

da glória divina.

Como numa cigarreira,

em eternas floras,

resplandece a luz angelus-cristã,

superando tudo que

é de humano proceder.

E aí, esta cigarreira,

aconchegada num canto,

pronta a explodir

a colisão de alfombras

alegres e eternas

na eternidade sonora

da Nova-Jerusalém.

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005