Sonho de Blasfêmia

SERPENTE

Eu sei, eu sei, eu sou

a mais infame eu sei que sou;

assombração, a sua assaltante,

a sombra incerta e sem semblante.

Mas sou sábia dos sentidos;

sou esperta, são bonitos

os saberes sem cegueira:

sabem mais e é mais certeira

uma verdade sem censura,

sem um Deus, mas com lisura...

Vem, então, moça bonita,

que hoje é tempo de crescer;

esta fruta proibida

é teu dia de morder.

Então come desta fruta,

se ela tenta não há luta.

Foi plantada e proibida

mas jamais foi escondida.

Eva, Eva! O que é que temes?

Não te rubres tanto o rosto!

Veste-te se acaso tremes

ao sentir o corpo exposto.

Eva, Eva! Que tolice!

Por um conto de uma cobra!

Deu ouvido à imundície,

dá-se a dor difícil agora.

E olha o riso da serpente:

largo e draconiano!

Quando Deus fez o humano

veio a cobra e fez a gente.

Então come desta fruta,

se ela tenta não há luta.

Foi plantada e proibida

mas jamais foi escondida.

EVA

A cobra não fez a gente; atenção!

A cobra fez somente o que era simples

ao humano coração.

A cobra não tentou, pois quem tentou-me

foi a fruta, que como resoluta:

se ela tenta não há luta;

foi plantada e proibida

mas jamais foi escondida.

O que fez, então, a cobra,

senão ser um reptil?

Por que pensa que fez obra?

Do que ri tão pueril?

Então agora eu dou-te desta fruta,

meu amor.

E não existe luta

pois foi ela proibida,

sem jamais ser escondida

nesta terra colorida.

Não te minto, é saborosa;

proves como é melindrosa

esta fruta cor-de-rosa.

Sacia teu apetite

ou mata a curiosidade;

esta fruta é um convite

ao que é puro e ao que é verdade.

Acaso fosse ruim,

ela não existiria;

Deus jamais a plantaria

no seio de seu jardim.

Não no seio do jardim,

não sob esta luz do sol;

não se ama a ti e a mim,

não se age em nosso prol.

ADÃO

Eu mordo, Eva, disso que em mãos tens.

Eu mordo porque quero descobrir

quantos males se dão e quantos bens

na terra que em meus pés se faz sentir.

Eu mordo! Mas qual gosto estou sentindo?

Um doce que dá sede em minha boca

e turva meu olhar num sonho lindo;

cores muitas, e a dor, a dor tão pouca

que somente essa sede há de ferino.

Enquanto a saboreio eu sou menino,

mas quando eu a engulo algo cavouca.

Cavouca-me a garganta adentro, Deus,

e também meu esôfago doído.

cavouca dentro d'alma, e os sonhos meus

remove sem piedade, num ruído.

Mas pensas que me enganas, fruto mau?

Mordo, sim, pois nasci um animal;

bicho homem, de fome e de libido.

Quis meu Senhor que eu fosse diferente

de tudo o que percebo à natureza.

Quis Ele que meu corpo fosse a mente,

mas deu-me a fome e o sono por fraqueza.

Eu mordo, sim, o fruto, com revolta,

sabendo que da morte não há volta,

pois nisso é em que meu peito vê Beleza.

Cada ser batizei, pois sou Adão,

e cada um olhei atentamente.

Vi em todos o mesmo coração,

e pensei que eu não era diferente.

Quando eles tinham fome, eles comiam;

quando eles tinham raiva, eles grunhiam;

o pássaro, o homem e a serpente.

Não, meu Senhor, não mais sou do que um bicho;

eu não posso viver o seu capricho.

DEUS

O fruto que comeis com tamanho prazer

nada revelará, pois verdade não há

para além do jardim em que vós viveis já.

Vedes a flor; a cor vermelha podeis ver?

Vedes como ela faz o vosso olhar se encher.

Que pensais que criei de maior no jardim?

E qual poder julgais maior haver em mim?

Que segredo haveria? Olhai o sol, tão claro!

Olhai a terra fofa e olhai-vos no amor caro...

Do barro e de um soprar divino eu também vim.

Expulsos do jardim? Deste que criei?

Porém por quais portões pretendeis retirar-vos?

Não vedes quem eu sou e que eu sou para amar-vos?

O fruto? Aquele fruto!? Filhos, perdoarei!

Não chorais, não assim. Este mundo eu vos dei,

neste mundo sereis. A Terra vos pertence!

Por Adão o Senhor cria e por Eva o amor vence.

Sim, populai! O mundo inteiro dominai!

Dos venenos que há, de cada um provai.

Mas que Deus seja irado, isso ninguém mais pense...

Eva, percebe já, esse fruto ruim

condena a tua raça a ter dores no amor.

O que antes era um corpo intato e de primor,

de face avermelhada e pele de cetim,

de olhar sempre estrelado e sorriso carmim,

agora, quando amar, a dor conhecerá,

e, quanto mais amar, maior ela será.

O fruto, minha filha, era veneno tinto

que derruba o saudável e mata o faminto;

mas mais sobre esse fruto ilusivo não há.

Adão, és animal no princípio e no fim,

a mente que possuis não pode mudar isso.

Porém tampouco o fruto achado no jardim

poderá te livrar do divino feitiço:

fi-lo besta completa, e também o fiz anjo,

dei-te a felicidade e também a tristeza.

Quis que assim fosse a gente, o maior desarranjo

que se pode encontrar em toda a natureza;

e que passassem todo o tempo a concertarem-se,

descobrindo as razões de uns aos outros amarem-se.

E a lágrima de Deus ante as costas dos filhos

salgou o mar inteiro e pôs ouro nos rios.

SERPENTE

Assim segue o sentimento

produzido da semente:

todos vítimas feridas

de uma assaltante serpente.

Texto terminado em: 23/11/2021

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 23/11/2021
Reeditado em 11/02/2022
Código do texto: T7392542
Classificação de conteúdo: seguro