LÁPIS-LAZÚLI (6)
PEQUENO DITADO
Não há desigualdade, nem injustiça,
nem inferioridade, nem cobiça
para as doces harmonias esquecidas
que um dia acalentarão de novo nossas vidas.
PAIXÃO NEGRA ou RAMO DE FLORES DOURADAS
a Raduan Nassar
Antes de me beijares,
pensando nas falsas estrelas deste amor,
não esqueças que eu não tenho lugares
para soltar o sangue vivo do meu amor,
da minha fome, ‘da minha enfermidade, do meu suspiro,
do meu arrepio, do meu sopro, do meu assédio...’
Não esqueças que eu fui ferido
(‘meus remédios jamais foram escritos em compêndios...’)
e cruelmente feri minha própria raça,
na 'letra dos antigos'...,
nas 'páginas nobres e ancestrais...’
Não esqueças que já estou banido
do “paraíso” onde vive a tua graça.
Antes de me beijares,
não me vejas como um anjo do céu,
pois os olhos cegos da paixão e do ódio sempre mentem.
Mas vê as marcas de meu braço grave e cruel,
‘virando a mesa dos sermões e
destruindo as travas...’
do meu mundo embrionário e demente.
Sente o gosto amargo, quando me beijares,
do veneno desprezível que bebo tanto
no trabalho, nas ruas, nos lupanares,
lugares onde visto de podre,
suspenso por um ramo de flores douradas,
o meu encanto desencantado.
Reconhece, enfim, quando me beijares,
que não beijas nenhum poeta encantado
e sim ‘o seu irmão de cheiro violento...’,
o monstro das cidades sem luares
que já fede antes de ser sepultado.
Cubro o rosto com as mãos
e ‘tateio a terra sólida e dura,
buscando o ventre mole
do mundo...’
[Nota: os versos amparados pelo sinal (‘) foram transcritos da poética de Raduan Nassar in “LAVOURA ARCAICA”]
TROFÉU DO AMOR
O que se paga no que esmaga o amor?
O que se indaga quando se nega o amor
qual esta adaga
quando se rega o amor?
Seja o que traga, sempre se nega o amor.
Quando se larga é quando se paga o amor.
Tudo se alaga, tudo se alega, tudo se aluga,
mas nunca a fuga é o amor.
Rasga a sua barriga de amor.
E a briga se paga com a bisnaga
de veneno que engasga.
E gago já não se pronuncia: amor...
E mais o enrosco que o seu rosto divaga.
Quanta farofa para o peito sem lago.
Seco... é assim o seu afago.
Beco... é assim o seu estrago.
ENCONTRO
Tu me conheces?
Por certo irás me ferir.
Tu me torturas?
Por certo sentes prazer.
O amor é tão imperfeito
e hipócrita em nosso mundo
que o beijo está vendido.
Tu me conheces?
Por certo aprendestes a matar.
Tu me torturas?
Como o carrasco da arte e do infortúnio popular.
Ninguém consegue do destino
a lei de voar pelos céus
com os fracos braços.
O mundo só considera uma lei:
de querer apagar o sangue
que ele próprio derramou.
Tu me conheces?
De certo serei um empecilho em teu fadário,
um perigoso e falaz adversário.
Tu me torturas?
É claro... ao certo queres
a felicidade só para ti,
queres acumular... queres dominar.
O universo humano está tão imperfeito
que não sabemos se estamos sós,
pois, se estivermos, morreremos de tédio,
e se estiverem com alguém morrerão de ira.
Tu me conheces?
De certo podes encontrar-me
a cada esquina e a cada fantasia.
A tua sede de destruição
vai me encontrar.
VIDA VORAZ
Vida voraz, comprida
como um carregamento.
Vida voraz, sentida
mais do que o sentimento.
Carrego sozinho a tristeza de outrora.
Vida voraz que rói.
Vida voraz que insinua.
Vida voraz que trafega
e transforma e se prega.
Parto sozinho a procura dos horizontes.
Vida voraz que nos consome
no medo, no mistério, no segredo.
Até quando esperar a redenção
e partir para o ato da felicidade em flor?
Vida voraz que tanto deseja
o que minha alma planeja.
Vida voraz que nos encanta
e traz na planta
o futuro do verde em sonhos.
Vida voraz
me faça risonho.
ADORMECI
Adormeci,
invariavelmente
o espaço silente.
Adormeci,
copiosamente
mil pedaços de medos.
Apavoradamente juntei estilhaços
homicidas.
Estrelas adormecidas,
tragédias adormecidas.
Adormeci atormentado mais uma vez.
Outro deve adormecer como eu,
estritamente pálido,
com o corpo inválido.
Adormeci,
estranhamente
querendo morrer,
documentando o passado.
E arrependido de ter cumprido
esta pena para o destino.
Adormeci,
tragicamente
por ter consciência de mim mesmo;
talvez
outros assim adormeçam.
FERNANDO MEDEIROS
primavera de 2005