Ela parecia Hannah Arendt

Saia, dê uma volta e se divirta um pouco, ela disse,

deve ter alguém legal por aí

o mundo é ruim e não adianta nada

cerrar as cortinas e beber o próprio sol,

mesmo um idiota, como você, merece uma chance.

E eu que sabia tudo e tinha resposta para tudo

fiquei calado outra vez,

desta, sem beijo e sem riso.

Ela contou pela enésima vez a história

de ter visto Parker fazer sexo com o sax,

olhei em cima da mesa e vi minha garrafa vazia,

filha da puta, pensei, tá mais embalada

que fusca sem freio ladeira abaixo. Destarte.

Saí e cheguei perto da ideia que me fez abrir a porta de casa.

Encontrei a neta de Tinhorão na esquina da 27 com a Maridara 36

Ela me disse Oi e acenou 3 vezes sem que eu pudesse entender

senti o furo da meia direita encaixar na cabeça do dedão

que sensação de encaixe perfeito tão imperfeito,

aquilo me incomodou e dei mais atenção do que tive de mim

enquanto decidia se sairia ou não.

E os dias seguem assim.

Nasci em pleno inverno,

mas a estação do meu coração é outono. Outono. Outono.

Ela parece saber disso, deve ler livros nos meus olhos

ou mapas nas palmas das minhas mãos

que não levam a nenhum tesouro ou ilha esquecida,

e ainda assim lhe dão a satisfação feliz de ser amada

por alguém que não tem nada mais a dar.

Que loucura, pensei, ela poderia ter títulos,

condes e castelos na Irlanda, talvez um rei a seus pés

e agora está sentada num muquifo em Tortuga

à espera de um fudido que vive como injustiçado

num mundo que é ruim para todo mundo,

não devia esperar mais dos Céus? Acho que sim.

E os dias seguem assim.

A beleza que meus olhos desfrutam se confunde

com o que não podia esperar e não alimentou esperança,

só que não me deixo levar, não me deixo levar

em outra vida devo ter nascido em Seattle nos anos sessenta

e devo ter usado muita camisa flanelada nos noventa

e ter ficado trancado no quarto com caderno, violão

e pistola com uma bala na agulha meses a fio

o que poderia ter saído dessa combinação dever ser objeto de estudo

ou talvez de abominação, mas a ideia constante de solidão,

além de agradável, é muito reconfortante.

Quase fui até a Via Verde. As águas do rio estão altas

e algumas ruas estão interditadas

tive vontade de rir como os loucos riem de quem ri de sua loucura

mas me contive e guardei o melhor de mim para mim.

Peguei o caminho de volta

e os dias seguem assim, repeti, e os dias seguem assim

dei aquele risinho de boca fechada e segui,

agora com passos mais curtos do que antes.

Grouchesco
Enviado por Grouchesco em 05/05/2022
Reeditado em 26/06/2023
Código do texto: T7509851
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