LÁPIS-LAZÚLI (8)
NÃO ESTAMOS MORTOS
Não estamos mortos, podemos ver ainda
um coração pulsando na força mais linda
contida em nossos ossos.
Não estamos bêbados, a lucidez estará presente
quando o grito de um homem
arrebentar as correntes;
homem este dotado de todo o saber,
homem este capaz de morrer
pela renascença de sua essência.
Não estamos mortos, estamos apenas divididos e alienados
pela perversidade de outros
que se afastam da luz da vida.
Mas nós estamos vivos, resta acender todos refletores
que iluminam e abrem todo o cenário da existência.
O cheiro de terra viva penetra em nossas carnes sadias
e só falta o nosso levantar,
só faltará a expansão de nossos anseios.
Não estamos mortos, e novas vidas irão sentir
nova natureza pacificando-se, edificando uma casa humilde e feliz.
Casa esta que não será habitada por tristes,
casa esta que será a personalização
da igualdade natural entre os humanos.
Não estamos mortos. Venham ver como brotam os nossos filhos,
como crescem as purezas dos nossos dias.
Venham ver que no pensamento do homem
ainda habita, em um campo farto,
o bem sorrindo para todas as árvores verdes.
Não estamos mortos, agora que chegou o momento
de abrir os braços, de levantar os braços
e lutar até vencer, até colorir com o nosso sentimento
a beleza de tudo que há no mundo.
Até contemplar esplendidamente a harmonia e a perfeição
que se move dentro do universo aurifulgente.
ENIGMA
Sopro de constelações.
Novo semblante que se cria
ao som das vozes e dos trovões.
Assim pensando no absurdo céu adentro,
permitindo evoluções,
os meus olhos como pigmeus.
Ninguém conhece o sofrimento de Deus,
em vastos delírios de quem carrega
todas as galáxias e explode em lapsos de criação.
De quem dentro de si reúne os colapsos da morte
e revive, novamente, para os seus próprios corpos ateus.
Ninguém conhece o mistério de Deus,
e sabe quem se lança dos dois olhos profundos,
revestindo criaturas que se traem como filisteus.
Ninguém conhece o sofrimento de Deus,
e a si mesmo a criatura reveste a sua comédia,
de instantes tão baixos, dentro da tragédia dos sentimentos,
do juízo que se estabelece em plena atmosfera livre,
onde a destruição é o julgamento de todos que partilham
com a dessemelhança do mundo em desintegração e sofrimento.
Ah! Ninguém conhece o sentimento de Deus,
de quem a si se carrega e num murmúrio explode a sua onipresença
em próxima vertente de constelação.
De quem a si se faz criação e processa sua vocação
de liberdade, e só deixa como juízo a raiz da criação
e de quem será seu herdeiro.
Qual é a face escondida dessa civilização que será a raiz
dessa liberdade que refaz e se parte e veria a sua cauda
num desdobramento que se estende no infinito?
Ninguém conhece o sentimento de Deus.
Quando além um poeta se parte no seu próprio universo
entre o sórdido que se esbarra e o sublime que desconcerta,
entre um engenheiro que constrói e um poderoso que, ao mesmo
tempo, risca uma fronteira no coração da terra.
Ninguém conhece o sentimento de Deus.
Explode mais festejos de luz onde o sofrimento se atrasa
com a alegria.
E o último julgamento só a raiz da criação é quem faz,
de quem com dois olhos em buscas passa criando em confluência
com o vazio que parece um terreno, uma plantação sem fim,
sem discernimento.
Ninguém conhece o sentimento de Deus.
CHUVA DE LAMENTO
O lamento de um mundo triste,
o encouraçado coração a rebater
sua cantiga de indecisão.
O mundo se revela voraz,
e a paz rebate contra a parede
como um louco se atira ao vento.
O triste mundo de lamento
que permeia sob a cidade
suas divagações.
Assim a chuva cai mais brava,
e o dia escurece feito um rito sem palavra.
O coração se revolta
em plena cantiga de desespero.
Assim a chuva cai mais fria,
revelando tanta discórdia sob a folia.
O mundo se atrasa voraz,
o progresso se abrasa na camisa suada
e o lamento perfaz sua incógnita.
O que compensa
quando o dia se pensa?
É uma consumação em meio ao vento do desespero.
E o trabalho se distancia das mãos.
Assim a chuva cai mais distraída
na encruzilhada falsa que resume a vida.
E o fogo do lamento incendeia
a camisa desfraldada no horizonte.
É um balão que parte, quem sabe,
para a última felicidade que se encontra
numa estrela.
Perfaz o seu lamento o mundo que não se pensa.
Assim a chuva cai como pedra,
petrificando capitais do mundo,
e as estátuas derramam o sangue do dia falso.
Assim a chuva como granito,
jogando a capa do silêncio sobre o grito.
O imperador distribui seu lamento,
nada se pensa.
Assim a chuva cai como recompensa.
FLORES DE PLÁSTICO
As duras lições não trazem nada
para os fortes?
O forte brinca e a superstição dança...
A soberania e o mal na mesma balança...
Ser soberano aonde?
Ser morto num filete de asfalto.
O conservar vazio dos que fogem...
A soberania, as propriedades.
As árvores que secaram em mim...
Entre o eu que criei e entre o eu que vivi...
Corri da soberania e dos guetos...
As duras lições que aprendi com os “fortes”:
o que ensina o individualismo?
O que ensina a arrogância?
Morro soberano no último sentido do termo.
Enquanto não estou nas nuvens, escrevo o não sei
e a desconsideração...
Nunca assim a vida foi tão fria e o mundo tão luxuoso.
Sórdida superfície onde o artífice do cotidiano
cantarola a sua marcha implicante.
Morro com um imenso engano no jogo concreto
de amarelinha.
Ninguém lerá o relato que vivi.
É um crime a clareza quando as correias
se interam dos pulsos.
O que ensina este papel lacrado?
Os mares só onde fui aprendendo a viver
com a minha morte.
Agora concretamente no centro do lodo
e o todo inverte a todo dia, a todo vapor,
a sua equação...
As ruas onde me vi com o sol
e a minha natureza sem par...
Morre a paz e algo tão raro
nas portas, nas vigas e nos cofres...
No centro do fogo o comodismo
e a desonra com o homem acostumado no limbo.
FERNANDO MEDEIROS
primavera de 2005