Gostava de falar que seria poeta,

Gostava de falar que seria poeta,

que tinha na palavra um sangue a mais que outrem.

Fazia só sonhar que o chamavam de esteta,

que o metro a cada verso o tornaria alguém.

A folha espelhava uma ideia dileta

enquanto da caneta o divo verbo vem;

a linfa do papel se cora e ganha vida,

e Pégaso relincha em postura devida!

Nascia um poema, uma prece a mais;

crescia sua obra, eram mais de cem;

porém nenhum poeta encontrou a paz:

faria outro poema e alçá-lo-ia além.

Quem via lhe dizia tanto fez ou faz,

quem lia até sentia um pouco de desdém,

mas é nesse vazio que se cultiva um verso,

e cada estrofe pronta era um universo!

"Não é água o que veem na peneira que trago,

pois tornem a atenção ao sol na minha pele.

A cada queimadura um novo verso eu lavro,

da sombra e da água fresca Apolo me compele.

Talvez meu versejar não me pague um centavo,

talvez a juventude assim me desmantele,

porém, quando eu fugir da cinzenta cidade,

verão que na peneira eu levava a Verdade!"

Gostava de falar que seria poeta,

mas toda a gente ouvia escondendo um desprezo;

o povo tinha pena, ele era um pateta

dos olhos pueris de animal indefeso.

Estava sempre ali, na sombra predileta,

fazendo a mesma cara estranha de surpreso.

Nos pais esse temor crescia pouco a pouco,

de que seu filho amado era da rua o louco!

Ninguém imaginou que o garoto nutria

a Fênix dourada em gaiolas de ouro,

ninguém imaginou que quando ele dormia

do Olimpo musas nove entonavam-lhe em coro.

Então ele acordava, e escutava, e sentia,

seu sonho era tal qual um rio escoedouro:

tivera outra visão enviada do Céu,

faria outro poema e ergueria o seu véu!

"Contemplem o nascer sublime da quimera,

um sonho pueril creditado na rima.

Jamais fui de temer o rugir da pantera:

nenhum barulho impede eu na folha me exprima.

E, quando na cerviz baforar-me essa fera,

ó Deus, sei que farei do calor obra prima!

O meu vociferante aviso manuscrito

que ainda soará das telhas de granito."

Gostava de falar que seria poeta,

do tipo cavaleiro empunhando uma espada.

Um dia conheceu um estranho profeta

afirmando que a morte era o fim da jornada,

mas logo descobriu a solução secreta

para escapar do fim: uma língua afiada.

Jamais deve temer a surda escuridão

aquele que viveu ornando seu caixão!

E assim cada poema era uma nova lanterna

construída do pó que o tempo faz soltar,

e embora não tivesse uma amizade fraterna,

sabia que na morte alguém o iria notar.

Então ele seguia na certeza eterna

de que grande alegria havia em versejar,

e, assim como outros tantos que se punha a ler,

sonhava que também não tinha que morrer.

"O velório é um detalhe aos que seguem vivendo,

cerimônia banal, tradição trivial.

No livro de um autor sua alma está fervendo,

no corpo só se foi a carcaça animal:

pois um autor questiona, e responde, e, querendo,

no mundo faz papel de professor astral,

e várias gerações após a morte física,

ainda estudarão a sempiterna lírica."

Gostava de falar que seria poeta,

que tinha na palavra um sangue a mais que outrem.

O povo tinha pena, ele era um pateta

que sonhava, e falava, e não era ninguém.

Mas ele descobria a solução secreta,

como um grande alquimista a alçar-se além...

E várias gerações após a morte física,

ainda estudarão a sempiterna lírica.

***

Finalizado dia 03/10/2022.

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 03/10/2022
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