Dona Amerca Loicera

Em SEMIÓTICA, "o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: o seu objeto"

Lúcia Santaella

Casa de Loiceiras. Eram muitas mulheres nessa casa.Esss família, de longe parecia um grande ninho. Sambavam sempre até a madrugada ! Eram pobres como todos os demais moradores do povoado com raras exceções de alguns com um pouco mais de terra, galinhas no terreiros e alguns com poucas cabeças de gado no pequeno pasto!

Família grande, moradores da Fazenda Piabas a 2 km da cidade de Biritinga. Eram homens e mulheres que conversavam muito alto, cantavam e trabalhavam na roça, pegando água no riacho vizinho, lavando roupas e fazendo loiças .

Os raios do sol de verão clareiam como holofotes as texturas queimadas das loiças : potes e mais potes de diversos tamanhos

O terreiro repleto desses vasos queimados em forno a lenha durante a noite inteira !

Gravetos coletados na vizinhança, palhas de côco, restos de madeira, lenha tirada do tabuleiro !

Feixes e mais feixes de lenha carregados na cabeça sob um rigor de sol forte ! Lenhas vindas dos arredores

Outra labuta pra recolher a argila na beira da várzea - ou rio Inhambupe que corta o município de Biritinga .

Cavar a argila que sob o rigor de sol e da ausência de chuva, ela se racha e suas rachaduras formam uma espécie de desenho quase que metrificados

Pegar os pedaços dessa argila endurecida colocando nos cestos, mulheres levam para casa esse peso em suas cabeças.

Levar essa argila seca pra casa em longa caminhada, passando por baixo de cercas de arames farpados, os grandes cestos colocados em suas cabeças sobre o conforto de rodilhas. Ao chegar em casa, cansadas do peso, da lonjura e do rigor de sol de calor escaldante!

Colocar ao sol nos arredores de casa em esteiras ou pedaços de plásticos

Depois, triturar essa argila com um pedaço pau ou pedra até ficar em pedacinhos pra facilitar amassar o barro com as mãos ou com os pés

Misturar essa argila a fino pó vindo de restos de loiças quebrados, triturados no pilão até virar esse material pra juntar com a argila molhada pra deixar o barro mais forte e no ponto de parecer uma pasta macia para fazer umas tiras que sendo enroladas entre as mãos, ficam mais parecidas com uma cobra !

Faz - se círculos sobrepostos até dá o formato do vaso desejado: potes, panelas, pratos, frigideiras, etc

Coloca-se esses vasos que comparo a um poema feito com as mãos com argila,água e muito carinho e entrega corpo, alma e barro! Concentra-se manuseando delicadamente cada vaso pra secar sem a correnteza de ventos e sem pegar os raios de sol !

Após, a secura, leva - se ao forno a lenha cada peça em forma de procissão, como num ritual, cada vaso é único! Cada vaso lapidado pelas mãos calejadas são uma espécie de poema, são como uma oração tecida pelos sonhos da aventura da venda para a compra do pedaço de chita para a feitura de roupas, da compra do café, do açúcar, do kg de fato já que a carne sempre foi artigo de luxo para pobres que nada tem donde tirar o seu sustento.

Todos os vasos arrumados delicadamente um sobre outros com destino já traçado: vender nas feiras livres e populares nas quartas - feiras em Biritinga e aos sábados em Serrinha.

Queima-se a noite inteira em forno feito artesanalmente

No outro dia a expectativa de após o forno esfriar, tira-se a cobertura dos cacos de panelas e telhas velhas e a alegria de vê todas as peças em uma cor! Um alarajando, avermelhado, róseo, cada peça com suas nuances !

São únicas !

Dificilmente, uma ou outra racha!

Alegria ! Chama os filhos pra vê a fornada de potes e panelas

Todas intactas ! Prontas pra venda !!

A retirada de cada peça é erguida como um troféu !

Arruma - se em cestos e vai-se à feira da cidade pra a venda !

Potes e panelas vendidas, as outras que sobraram, voltam para casa para a aventura de vender em outras feiras

Lembro - me da história de nossa vizinha Dona Amerca ( era assim que todos chamavam ) loiceira antiga, arrumou o seu grande cesto com todas as peças queimadas e saiu pela madrugada com esse cesto na cabeça andando ( a pé) da Fazenda Piabas até a cidade de Serrinha pra grande e tradicional feira popular de sábado

Lembro que minha mãe falava toda sentida que Dona Amerca ao botar os pés na cidade de Serrinha, tropeçou e quebrou literalmente todas as peças !

Minha mãe contava com muita tristeza !

Dona Amerca negra, pobre e mãe de vários filhos ! Trabalhava na roça como uma leoa!! E fazia as suas loiças como forma de sobrevivência.

Mas, um grande homem que não me lembro o nome - teve a dignidade de pagar todos os potes e panelas quebrados com o tropeço de Dona Amerca na entrada da cidade de Serrinha!

Raimundo Carvalho
Enviado por Raimundo Carvalho em 29/07/2023
Reeditado em 30/07/2023
Código do texto: T7848997
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