MEU PAI ERA HÚNGARO

meu pai era húngaro.

(magiar, húngaro, o gentílico.)

me amava em húngaro,

me ignorava em português e me batia em etílico.

as mãos de alabastro pintadas pela idade

(sou filho temporão)

escondiam a face cor-de-rosa e os olhinhos de vidro

mas desnudavam o coração.

quem era aquele homem enigmático e triste,

magro como uma aranha, silencioso como uma pulga,

tão gracioso quanto uma locusta bíblica,

anguloso, arestado, como se tivesse um ponto de fuga?

era meu pai, o húngaro,

a quem chamavam de turco por ser estrangeiro

porque todo estrangeiro era turco para os ignorantes

que, sob a luz do preconceito, reduziam a um termo o mundo inteiro.

era meu pai, o húngaro,

numerado e resgatado não se sabe como,

e como veio a ser meu pai também ignoro,

só sei que conheceu minha mãe e me passou um cromossomo.

meu pai era húngaro

(dizia que de Budapeste)

me ensinava húngaro - eu nunca aprendi húngaro -

falava de goulash, de política e de faroeste.

o chapéu sobre a cabeça européia

(logo, altiva)

dobrou a esquina num cinco de setembro e nunca mais foi visto.

a memória agoniza, mas insiste em manter-se viva.