EU, CRUA

Eu sou péssima e sei disso. Ninguém me disse: é só olhar pra esse emaranhado de confusões e auto critica ambulante. Eu sei quem sou e chegou a hora de deixar o mundo saber também. Alguém liga? Não. Mas sou tão nojenta e arrogante que só me importo comigo mesma. Me acho feia, antipática, me comparo e me diminuo o tempo todo. As pessoas dizem que eu pareço ter vinte e poucos anos, mas não é isso que o meu espelho me mostra todos os dias. Vejo flacidez, celulite, culote, barriga e coxas enormes. Tenho peitos diminutos, não enxergo bem e me falta um dente. Meu cabelo é marrom e não cresce, minhas unhas tampouco e meus pés são craquentos e encardidos. Me sinto uma farsa bebendo quase todo dia pra tentar ser feliz e todos os dias me convenço de que isso não tá dando muito certo não. Defendo o poli amor, a poligamia, o amor livre, quero amar todo mundo, quero liberdade incondicional mas me prendo em uma relação monogâmica atrás da outra. Como mais do que preciso e ando menos que devia. Imponho metas alimentares que não cumpro, me frusto, me encho de comida como forma de recompensa, punição ou auto sabotagem, o que se transforma em bola de neve me deixando com transtornos alimentares desde que me conheço por gente. Tenho memória fraca, não sei fazer cálculos, e nunca me lembro dos acontecimentos passados. Detesto históricos, rótulos e que só falem do que se foi. Acho as pessoas fúteis e consumistas inconscientes, o que me leva a não suportar a junção de coisas inúteis que a maioria tem. Julgo todo mundo, digo que odeio fofoca e não quero saber da vida alheia, mas stalkeio quem não conheço e chamo as pessoas pra falar mal dos outros com a desculpa de saber as novidades. Digo o tempo todo que é muito difícil ser eu, como se pudesse usar isso de muleta para os meus rompantes, como se fosse aceitável ser tão impulsiva. Com certa frequência me desfaço do pouco que compro, uso roupas ganhadas ou trocadas e tenho o sonho de viver pelada. Adoro me gabar que nunca fico doente, mas tô sempre com uma dor aqui e ali, vivo cabisbaixa, triste e entediada. Tenho problemas estomacais, vivo passando mal, reclamando disso toda hora, mas não faço nada pra melhorar. Critico quem usa drogas, detesto hipocondríacos, me nego a tomar remédios, mas apoio a galera da maconha e uso Isd. Tenho depressão crônica, sou borderline e vou tomar tarja preta até morrer. Defendo a legalização, sou contra o voto obrigatório, a pena de morte, o porte de armas, defendo a revisão do sistema prisional e escolar, penso que bandido bom é bandido reabilitado e sempre que me meto numa discussão sobre isso quero bater em todo mundo, o que me causa alguns desconfortos sociais. A única coisa que falo e que cumpro é quando digo que não minto. Mas isso também me causa vários constrangimentos ao ser taxada de grossa e arrogante, pois as pessoas não estão preparadas para ouvirem verdades, mesmo que elas peçam sobre isso. Em tempo: não me meto na conversa alheia e não dou opinião sobre o que não fui consultada, então se você não está preparado para minha sinceridade não me faça perguntas esperando redundâncias porque ela não virá. Sou insegura, insensível, egoísta, não me encaixo em lugar nenhum, não me acho em nada que faço, faço de tudo um pouco e não faço nada bem feito. Não tenho paradeiro, não tenho sossego e não gosto de nada nem ninguém. Minha vida é uma piada, tal qual a minha cara. Defeitos me faltam dedos pra contar e nas qualidades eles me sobram na mesma proporção. Sou teimosa, irritada, reinenta, isolada, sem amigos, sem família, estranha, irresponsável, inquieta, perdida e sem noção. Sou extremamente contra ter filhos e posso listar um milhão de motivos para defender a minha tese, incluindo o fato de que acho que não sabemos cuidar de crianças. Tanto é que não criei a minha e não sei cuidar dela até hoje. Aliás, não sei e nem posso cuidar de mim mesma pois já tentei suicídio tantas vezes que por orientação médica não posso viver sozinha. Ou seja: tenho que ter alguém pra cuidar de mim, enquanto cuido de alguém (?). Também não presto pra ser mãe de gato e não tenho paciência pra cachorro, apesar de amar os dois. Não tenho objetivos, ideais ou metas pra cumprir. Vivo o hoje me arrastando sem perspectiva de futuro nem de aposentadoria. Me escoro na filosofia do imediatismo tentando tapar o sol com a peneira, pregando a ideia de "só por hoje" mascarando o pavor que tenho do futuro e mentindo pra mim mesma que a solidão não vai chegar. Sou vegetariana, quero ser vegana, me preocupo com a camada de ozônio, me interajo das questões ambientais e defendo a causa animal enquanto me torno uma capitalista safada ao trabalhar vendendo carnes e usando botas de couro. Tento ser fitness, pratico yoga e meditação, e só assisto documentários. Em contra partida como uma pizza inteira me irritando até com a respiração de quem está ao meu lado e reclamando que não posso ir correr amanhã porque não quero acordar cedo. Sou pessimista, espero o pior das pessoas, vejo o lado negativo em tudo e sempre acho que quando tudo tá muito bom é porque o universo desalinhou e logo vai acontecer algo de muito ruim. E por falar em universo, adoro me taxar de vibes, penso ser hippie, curto um misticismo e tenho meu mapa astral, mas não suporto os namastês que só falam em gratidão, cogumelos, sol em vênus e usam o mesmo universo como desculpa pra todas suas cagadas. Sou tão patética que tenho pena de quem escolhe conviver ao meu lado. Sei tanto sobre mim que até acho que posso tirar algum proveito desse entulho todo: pelo menos eu sei quem sou. Admito meus erros, minhas mancadas e meus fracassos - que são muito maiores que meus tiros certos, meus acertos e meus sucessos. Mas de que me adianta essa auto confissão de culpa? O fato de eu admitir ser péssima não ajuda em nada, eu sei, mas me vanglorio de pelo menos não ser um daqueles idiotas que não sabem quem são. Eu sei. E tento viver com isso me virando como posso. O povo adora dizer que tudo na vida tem dois lados: nem só de maldade vive o diabo e nem só de dejetos vive um lixão - dizem até que vez ou outra por lá nasce uma flor, e que o tinhoso nem sempre atenta, às vezes ele também acalenta. Quem sabe um dia eu consiga fazer brotar uma florzinha no meu aterro, ou quem sabe até uma semente de humildade, afeto e compaixão que se tornará uma árvore tão forte e tão viva como não fui, e talvez ela poderá ser usada pra me fazer subir um degrau na escadaria da vida.

27/09/2023

Lu Ciana
Enviado por Lu Ciana em 06/10/2023
Reeditado em 07/10/2023
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