ÁGUA FRIA

sentei-me para lavar as mãos

tão cansado que temi o peso da água

tive a impressão de que fazia anos que não lavava as mãos

porque a água que delas corria era mais suja que o chão

tanta espuma de sabão talvez para que eu não visse

que na imúndicie que escorria havia um tanto de mim

se despedindo no turbilhão como que com medo da velhice

da sandice da cretinice

e vinte minutos naquele ritual esquisito

de nada serviram porque não havia conexão entre o que eu fazia

e o que se passava na minha cabeça naquele momento aflito

quando toda uma existência embolasse na garganta num ensaio de grito

lavei entre os dedos como diz a cartilha

também as costas a mão e a palma repleta de anotações

à caneta para que eu não esquecesse o que foi esquecido no meio de uma ilha

desprezado numa pilha

sequei as mãos numa toalha velha pendurada num prego

cheirando à umidade decadente relativa à toda casa boa que sucumbe

fechei os olhos porque depois da limpeza era melhor seguir cego

para não ver o que restava se desfazer como lego