ALDEIA DA ALMA (3)

MÁGOAS

A mágoa abriu-se e cresceu,

a ira contida da vida revelou-se,

a lágrima fria fervia no coração.

A nossa imponência falia

como se toda a luta dos dias

fosse simples, simples utopia...

A mágoa dos outros está acordada

para tomar o primeiro ônibus de manhã.

A cor, o preconceito, o direito e a miséria;

é a mágoa, é a água que verte de nossa pele.

O mito, o triste, o Deus, o nada...

É a mágoa, é a água que verte do nosso amor.

No peito a dor

de ser fraco e sem direito à vida...

O grupo social colhe a ignorância

e semeia iniqüidade.

Oh! Mágoa de saber de nossa verdade,

no leito, a dúvida,

no leite, a dívida,

no lenço, a dádiva,

o empréstimo

e a devolução obrigatória.

Oh! Mágoa... construção de um peito-arte

de raízes profundas com sonhos além de Marte.

Esperança... tempo de uma longa estrada,

mágoa deste caminho difícil e estreito,

restrito caminhar...

Esperança... Esperança...

Belo nome que nos deixa uma herança,

linda herança que não desaparece.

Mágoa que fere tanto os seus filhos,

talvez, só com você se encontre o alvorecer.

Como os elos da vida prendem-nos!

Nossos ossos quebram-se com a fragilidade.

E na mágoa de nossos elos, nossas prisões

soltam-se pelo espaço

a procurar veneno...

E a mágoa do veneno traz a morte

em vida crua...

Assim continua a cadeia

da grande lei injusta de homens...

Temíveis leis dos homens!

Que abominam a liberdade,

que até de sinceros ideais inocentes

querem roubar tostões...

Ó... mágoa... dos homens! Revolta de ser tão pobre,

tão pequeno que destrói a própria evolução.

Ó mágoa dos homens... mágoa do rico, mágoa do nojo.

Ó mágoa...

Intenso grito de revolta suplantado pela covardia.

A VIDA E O BOFETE

Cálidos ventos dos sem abraços,

ser este traço de marionete.

Não gosto da vida e seu bofete.

Ingenuidade de se acreditar na sorte.

Escrever o número sete nos quadrinhos

hediondos.

Gosto da vida e seu confete,

as drogas todas já perfiladas,

as malícias todas já decoradas.

Dominar o mundo com uma frágil raquete.

Não gosto da vida e seu bofete.

Até ontem cantar era bom,

hoje, obscuro, soletro o dia

de cão civilizado.

Não gosto da vida e de minha manchete.

Assim que me desvio, cessa-se o murmúrio,

mas começa o arrepio.

Temo a cilada e a válvula de escape.

Assim que o rapa começa,

escondo-me no arbusto da noite,

aonde não chegam os demônios da noite.

Temo a vida e o seu breque,

cartilagem frágil,

aragem de ameaças.

Não gosto da vida acostumada ao bofete.

E pensar que a borracha e o sangue

alimentam estas bocas...

Não gosto da vida

e seu delicado cínico bofete.

DISSOLUÇÃO

O que se passa no mármore

Eu transparente? Caminhei os vidros,

afoguei nos tanques domésticos...

Os médicos não passaram por aqui.

A vida eu a devoro

dente por dente.

As hastes do imperialismo

já se levantaram.

É uma traição indecente

esta pedra que se impregna.

Os risos se pontificam

e eu, digno, caminho indigente.

Agora, como poeta, tenho que rejeitar

o meu verde.

A vida eu a desafio dente por dente,

e tão concreta é a sua estrutura decadente!

As veias e os arco-íris do cinismo,

a muleta, meu terceiro braço.

Poderoso e paciente...

O que se passa adiante?

A vida eu a renego dente por dente.

Esta canção que se repete,

o meu alimento que reina como veneno.

A vida eu carrego por não ser mais inocente.

A vida eu enxergo com olhos de serpente.

O que se passa no asfalto e o que se prolonga

aqui dentro é o navio, é o vazio.

As veias que pululam em minhas próprias mãos.

As asas abandonadas qual papel de seda.

Eram frágeis as asas,

eu não sabia, era inocente.

As asas rasgadas

tão papel de seda.

Um arco gigante e uma flecha no fim da vereda.

Meu sangue eu desperdiço

na tarde excedente...

Meu corpo é um cortiço

e vocês, reis e rainhas,

tombam do meu horizonte

que termina no morro.

Na vida eu me incluo,

mas ninguém sente,

porque a máquina é crua,

ela caminha conosco.

Na vida o paradeiro incerto,

a ânsia no rosto,

a vida como desafio dissolvente,

e como o mar pode estar aqui?

A linha transitória do passado,

a vida eu a absolvo,

enterrando sementes.

E como mármore pode se mover

ironicamente?

Uma lente de contato

eu tenho e enxergo o arco e a flecha

certeira em sua incerteza,

fascista em sua mesa.

E como resistir pode um covarde?

O tempo é o único alarde.

O meu incidente e o imperialismo na tarde.

A vida eu crio fracamente.

Uma ilusão que teima no tira-teima

em não ver o tira abjeto que me faz objeto.

A vida eu cavouco indecentemente,

enterro o meu osso para amanhã

eu poder roer dente por dente.

A vida não domino,

meu nome é um ente

do dominó acima de mim dominando

o nó cerrado do mundo.

A vida não me descarta,

até minha omissão é uma carta

do baralho do mundo que me desafia

como navalha...

A vida e o seu falar,

acima de mim os quatro

cantos da mesa de bilhar.

E o meu coração rolando,

Rolando, morto...

O taco frio do método frio.

O fim é este e a palavra é esta:

Esteja contente!

Por restar a possibilidade,

as luas se aglomeram solitariamente

diante da imensa vontade de amor,

na fria e impassível noite do mundo.

A vida eu a reflito,

propositalmente.

As algas se vestem em torno de mim.

Cavalga minha muleta anti-herói.

Na vida desfruto com desespero.

O fim é este e a palavra é outra.

E a história é o prolongamento

deste alfabeto em reboliço.

E a palavra é o que dentro

de mim constrói aquedutos,

e o fim é um conflito

no mundo de capas e de vampiros com os olhos

astutos.

O prolongamento é este,

entre a reunião dos sinais e a dissolução dos objetivos,

o fim é este

e a vida eu a prolongo

passivamente.

E a possibilidade se reveste

aurifulgente...

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005