ALDEIA DA ALMA (4)

AFORA

Afora o que está fora de mim

só o jogo bruto sabe.

Sabe o que de quem devora.

Afora

não compreendo a alma que decora

seu vício.

Afora está a hora que engole

o meu serviço

de se acabar por instantes.

Afora está o que se esquece,

o que se chora,

o que traz em mim

a lamparina que devora a vela

aonde escondi a salvação.

Afora está a arena

implacável que traz o pior vegetal da flora,

o próximo veneno...

Afora de você está pingando a hora

que traz sua notícia

num sorriso de malícia.

O que farei lá fora

afora?

Aforismo.

A peça que não se decora.

Afora, Afora... Aflora,

a forra, a farra, o ferrão.

Afora, a ferrugem da fanfarra.

Afora...

LIÇÃO DE MESTRE

O mestre da convenção traz à sua bolha

o esmagar da consciência.

Articula-se a fava o falso mel que lava

o estomago... e que amargura!

Alguém é mestre em meio à terra desconsolada.

Mestre da esmagação.

Alguém é mestre quando caminho

na esteira da própria traição.

Mestre da reação por reação.

Decorar o que a palavra antecede no misto

do instinto e da consciência.

Quanta decepção guarda-se no recinto.

O que sorri

não dura muito,

pois logo se conhece toda a violência.

Alguém é mestre da lábia sem cuspe

e a moral vê o inatingível de seu lustre.

Alguém é mestre daquele que vai como pedestre tramando o seu destino na recapitulação de sua história em cela.

O que mostra o nosso reflexo em flor

é a contradição do amor ao desamor.

É o que não se atinge.

É o que se respira na ignorância.

Quem é seu mestre quando alguém é mestre da amputação?

O único caminho da flor dentro dos olhos

é um desígnio furtivo que se engendra,

apesar da vestimenta dos que se ornamentam.

Não restou mestre agora,

uma estátua esfacelou-se na própria estátua que se constrói

sobre o farelo das cidades.

Um anelo ainda nasce até o repasse da decepção

quando se joga areia aos olhos

e tudo se torna conforme a fôrma.

Alguém é mestre daquilo que vai como pedestre.

Será sou eu? Será o quê?

O nosso reflexo esfria

o desígnio da flor em fria.

Alguém é mestre de esgotos sobre tendas

da dissimulação, assim é a casa

que se esconde no corpo.

Assim é o recurso

de um erro que se estende.

E se diz escola

quando é comissão de quem esfola

o sentido de refletir.

E se joga no “afeto” do vidro que corta

e anula-se a transparência de vida.

Alguém é mestre da palavra decidida,

do que se conjuga numa cartada indefinida.

Nunca finda a concepção de injúria.

Alguém é mestre do temível júri.

Daqui, ali... teimosa e temível lição de mestre.

UM APELO

Um apelo à simplicidade.

Um apelo à doce palavra.

Um apelo ao pássaro da tarde chuvosa.

Cansa-nos o rugido dos ferozes.

Cansa-nos este estúpido culminar de ambições.

Simplesmente um apelo ao descanso.

Já são enormes as novas cruzes, a agressão das vozes.

Que seja um derradeiro apelo,

que seja o ponto final de todos nós,

mas, por favor, façam a súplica dessas luzes.

Façam, por um só instante, a verdade nos quadros.

Pintem de verde a última de nossas paisagens.

Que seja um apelo que dê forças – é tão difícil a luta

em nossas viagens...

Morra, porém: faça um apelo! É a demonstração de humanidade,

quem sabe? um perdão de você para você,

pois foi seu braço que também violentou,

que as flores do mundo arrancou;

pois foi seu olho que também inundou a malícia,

coloriu sarcasticamente a sevícia.

Mas faça o último apelo! Quem sabe esse pedido não

ficará pairando nestas paisagens que assistiram múltiplas tragédias?!

Quem sabe ouvidos de um novo mundo

possam ouvir algo de sua sensibilidade morta?!

É o que lhe peço, homem, que, de cima das pedras,

atira corações nas imensas cachoeiras de sal.

É o que lhe peço, o último dos apelos à poesia,

o último dos apelos à doce palavra, para que, com isso,

fique impregnada, ainda, uma esperança em nós,

mesmo que seja apenas uma esperança.

Emita um apelo! alguns novos corações costumam fazer

de uma remota esperança as pedras de um grande alicerce.

O VIAJANTE

Passos com Passos; existe um ponto iluminado.

Boca com Boca: existe o momento estético

no prazer de um beijo estendendo-se francamente.

Braço com Braço: é o momento de pão sobre a mesa;

a mesa que poderia ser do tamanho do mundo.

Olhos com Olhos: vamos ver a verdade,

como se escondem os olhos dentro de seus próprios mundos.

E ver, sobretudo, quanto custa a verdade.

Peitos com Peitos: de um abraço, uma confirmação,

de um abraço, este enredo de um passo em empreendimento,

de uma boca, a palavra verdadeira,

e dos olhos, a vista da personificação

de uma mesa florida que se estende por todo o mundo,

e um canavial de luzes e uma casa de tijolos estrelares.

Dos passos, dos braços, dos olhos, dos peitos, das bocas,

tudo isso... E do homem, enfim, a razão de ser viajante,

de ser um passo, uma boca, um braço, um olho, um peito.

Um viajante que venha com o caminho assim preparado, com o corpo e com a mente prontos, para ativar

os geradores de todo este mundo...

PEDRAS DE AÇÚCAR

À doce NAZA BREEMAN.

Que pedras de açúcar do engenho mais nordestino

adocem a água contida no copo daquele que passa tanta aflição, daquele que necessita viver, pois morreu, pouco a pouco, numa prisão, seja qual tenha sido o tipo de prisão.

Que pedras de açúcar, ou melhor, que pedras cristalizadas de

açúcar dos canaviais do Nordeste mais nordestino

sirva de alimento, pronto para satisfazer a doçura interior

daquele que é obrigado a ser seco para sobreviver.

Tão gostoso seria ver uma chuva brilhante de tão cristalina,

uma chuva de neve açucarada a alimentar o solo de um coração,

uma chuva de pedrinhas de açúcar para as crianças pobres

das favelas alegrarem-se com o doce de neve açucarada.

Uma chuva de pedras açucaradas e leves para todos os trabalhadores salgados, por tudo o que há de suor explorado.

Uma chuva de pedras de açúcar a adocicar

o solo de todos os corações sofridos.

E, principalmente, uma chuva de pedras de açúcar a oferecer força, aplicando glicose para uma luta, para a luta que será intensa.

CINTILAÇÃO

Pelas cercanias de um oceano inexistente,

brinco com o olhar de uma morena.

Pelas açucenas que florescem

confundidas com um dia magnífico

que esmaga o cotidiano.

Sorrir, mais que sorrir,

e repartir ligeiro

as despedidas constantes dos girassóis.

Pelas cercanias deslumbrantes de uma guerrilha vitoriosa,

cuja retaguarda é um grito de prazer e

vitória da vida.

O encantar dos encantares,

os pássaros voando acima do sombrio,

rumo ao céu, anunciando a paz divina que resguarda o humano.

Pelas cirandas de infâncias renascidas,

o estar nos estares,

o cantar dos cantares.

Pelas cercanias

do paraíso,

um abraço cândido

acalentado, próxima, a dor que se despede,

o mundo além-trabalho,

alienado e cruel.

Pelas cercanias do rio Amazonas,

rumo ao paraíso,

sem a violência de florestas estranhas,

o mundo além cotidiano

e visão convencional.

O esgar do passado,

o cantar dos cantares,

o resumo da vitória humana e divina.

Pelas cercanias do paraíso...

OS PINHEIRAIS SOBERANOS

À Dama de Negro,

com um cândido abraço.

Em frutos se personificam

as vozes longínquas,

mas eram apenas vozes longínquas

nas suas realidades distantes.

Em frutos vieram amigos

angariando a satisfação

tão angustiada de decepção.

As cortes estavam destruídas,

e só assim era possível

um abraço sincero.

Frutos abundantes

eu muitos deles espero.

As correntes se partirão?

Os frutos serão

mais além do que são.

As cores também se

personificarão.

Estendidas as cores

sob tantos, mais do que tantos

oceanos,

em frutos cantarão aos ventos

os pinheirais soberanos.

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005