Espaço afora

Eis o resumo, a rapsódia

Sipnose que o homem dá de si

Dá de se denunciar por linguagem

Testada, martelada, semi-aprovada

Eis o que confesso:

Braço forte, olho vivo

Cor de piche

Perna de vigor e estômago de soldado

Lágrimas de jacarés amazônicos

Engelhados de tanta realidade.

Eis a auto-sentença:

Corpo robusto, alma mais aguda

Boca de café e joelhos de rótulas dentadas

E palavra.

Confesso a palavra que me sai do antebraço.

Pensar em céu e agir de cão

Pensar em céu até que da boca nossa saia "asas".

Eis a confissão do ódio de um país inteiro

De potencial sufocado em estufa

Um mundo tão talvez novo

Que bate na casca de ancestral ovo

Sussurrando o consolo dos seres-vácuos atormentados.

Confesso a palavra que me sai do antebraço

E toma impróprio espaço

Por estar fora de mim

Mas tudo seria alheamento não fosse a palavra

Enxertada, intrusa.

Não nego a estranheza da totalidade das coisas

Em caso de palavra ausente e nó perpétuo na garganta

A escravidão, o tédio, a revolta

Seriam mais uma asfixia intradutível

Na glote das gentes.

Mas de mim nasce a palavra ressonante

Que é libertação do meu próprio azar

em silêncio de perplexidade.

E traduzo injustiças por meninos chorando

Analfabetos ilegíveis zoomórficos

Mães parindo sangue na violência

E eu sou, sobretudo, a palavra dos meus dias e a voz de muitos irmãos

Então confesso os índios relegados

E negros em subsolos num quadro de navios

E operários no escuro sem saber que o sol é deles

Em subsolos,

Lá onde estão as palavras definitivas

Trancafiadas nos séculos e na tradição

Eis a minha confissão de nojo

Nojo da boca que tranca a palavra.

Ora, enfim confesso!

Sou portadora de um membro estranho

E um órgão vital me excede

Sou como os anômalos físicos

E não tenho três braços e um olho a menos.

Tenho, sim, duas pernas

E a palavra.

Tenho sete erros, sete acertos

E a palavra inundando interstícios

Membro vivo que me sai do braço em estuário

E revela a força aglutinante

Acumula os alaridos e os gemidos de um povo

Este membro-palavra

Tem entre os dentes minha luta

Minha força-bruta feita de algodão e mel.

Quem vive palavra pensa céu.