- vós      oh místicos seres     reparai nestas ruínas desertas:
“deus não vive ou não existe aqui!”
há corpos sem vida neste mundo de lágrimas…
é só canalha e tanta mortalha...
balas rastejantes cruzam o espaço
na noite     sem luz,
foge-se com medo de tudo e de nada
e quando se pensa que tudo acalmou
rebenta mais uma granada
 
- caminhamos invisíveis
numa cidade que há muito se apagou...
de telhados esburacados
e janelas estilhaçadas
nas casas desfeitas pela guerra
deixando desgraçados sem nada

- ao longe...      ouvem-se distintamente
       mil estrondos
e a cadência monótona das botas cardadas
das fardas que empunham armas em riste
de culatra armada 
ouvem-se ao longe
nos escombros desta cidade em chamas
mas apagada
 
- sente-se a tarde prenhe de nada que cai
na monotonia do tempo…
rostos de medo vestindo numa equação de dor
o grito amordaçado da revolta
espreitam por entre as ruínas…
são farrapos humanos     sem guarida
são os espectros da morte
a quem roubaram a vida
 
- trapos a meia haste vestem esqueletos
ambulantes…
em traços teimosos vê-se a vontade de fuga
sem esperança alguma...
são mil desejos que se evaporam em castelos
de espuma
no pó da distância      do tempo perdido...
viúvas que choram     gritos de mães que abafam
a dor na dor da revolta
em promessas de nada recheadas
de coisa nenhuma
 
- e riem-se os governantes
que celebram tratados com total safadeza
em faustosas festas de salão
usando teoremas sarcásticos
de equações irresolúveis de surdez
sem solução

- e tu     mulher do mundo    que vens apesar deste luto
pedir-me em súplicas lascivas
poemas de beijos abraços e sexo,
não vês a desgraça que passa a teu lado?
não posso abraçar-te nem sequer desejar-te...
não te posso amar!
doem-me os braços do peso da espingarda
não posso beijar-te que me arde a garganta
de dor
que sinto a cabeça dorida e cansada
dos gemidos de agonia que ouvi
das mortes que fiz
nessas montanhas esventradas de profundas
e feias crateras de tantas granadas nelas estoirar
 
- não posso abraçar-te      muito menos beijar-te...
dói-me tudo por dentro...
vou primeiro hibernar e dormir um longo sono
um sono eterno do qual jamais quero acordar
 
- vou estabelecer monólogos de perdão
com as paredes da sepultura em que me quero deitar
       e me quero perder
e nesse coval depois de me redimir
sonhar as cores dum horizonte de sonho,
pensar o doirado dos trigais...
e depois desse longo sono     redesenhar a vida
descobrir o tempo      novos oásis
na geometria dos cristais dos teus olhos
       e traçar
as linhas firmes do teu querer,
pintar a lua de prata e o sol de mais luz
(re)inventar o voo mágico dos pardais

- quero      depois      nos limites do tempo
descobrir a vida para poder desenhar
o sítio onde há mais luz
o voo da (Gaivota) Fernão Capelo
que se julga perdida
mas se encontra no seu regresso ao mar
 
- quero      incessantemente      procurar o porvir
o porvir sem mais guerras
o porvir de mais luz
e nessa paz respirar o teu ar
cheirar-te o suor
sentir-te por dentro      e gritar
 
- quero-te      depois      meia laranja saboreada
a rigor      com gosto a mel ou sabor a sal
como o mel doirado do sabor dos teus beijos
ou o cloreto de sódio cristal...
e (re)inventar-te numa nova origem
e contigo passear os nossos corpos
cansados      lassos      lentos      húmidos
depois duma noite cansada de amor
diferente da chuva que cai lá fora
húmida      rugosa      assustadoramente social
 
- e perguntar-te      num doce murmúrio    
ao ouvido
entre orgasmos múltiplos há tanto esperados
e sonhados
“onde vamos nós guardar tanta ausência
e tanta angústia?”
nós sabemos
lá no íntimo nós sabemos
que nada sabemos de nós…
raios      que nada sabemos de nós!?
 
- «nada       absolutamente nada!» sabemos de nós
grita-me por dentro
sempre esta incógnita voz
 
- vamos vestir a solidão
guardar na memória a memória do tempo
daquele tempo sem tempo
e carregar      connosco      a esperança
para toda a vida
vamos fugir para a lonjura duma terra
longínqua no nada perdida
e perdermo-nos de nós
 
- quantas vezes pensamos no prazer que nos dá
uma página de certo desprezo…
e gostamos desse paradoxo
porque nos faz compreender que a ventura
é apenas a ausência da ventura
 
- procuramos nos contornos da noite
numa costa distante
o sonho na voz profunda do mar
o encontro com uma voz
que nos faça esquecer de nós…
apalpamos a noite nos seus contornos
enquanto esperamos outro princípio
 
- grita-nos     por dentro     uma outonal
e intranquila realidade entre o céu e a terra
um vento vago que erra ao acaso
e sopra reminiscências doutra vida…
uma folha seca que se ergue aqui
e além acaba por morrer    igual a mim e a ti
igual à vontade de já não ser

- deixa-me estar sozinho na distância que se perde
no infinito e perder-me…
perder-me em voos de (in)certezas,
fazer dos gestos melancólicos dos meus dedos
no oiro fino dos teus cabelos
um poema permanente
e idealizar luas cheias nos teus olhos
e neles imaginar estrelas cadentes
(as únicas que brilham nesta guerra absurda)
 
- quero ser vitórias      derrotas      fantasias
ser o Muro de Berlim que cai em ilusões trágicas
e sombrias...      quero ir contigo e ser
no embalo das madrugadas
o lento morrer dos dias
 
- vogar de desejo em desejo indiferente a tudo
que me rodeia e esperar por ti      aqui
enquanto queimo um cigarro no silêncio
vazio da noite onde tudo se inventa
se constrói     destrói e magoa
esperar por ti     aqui     onde tudo dói
e se esquece     antes que tudo doa
 
- e ser aquela criança que traz nos olhos
a imensidão dos mares
e o oiro das searas cintilantes,
infâncias e fontes de harmonia e cor...
ser poema nos teus seios de princesa,
ser a vida no teu ventre     e na voz
as palavras ainda por gastar...      ser ânforas
de beleza     fragrâncias poéticas      e voos
por voar      ausências de mim sem me  encontrar
perdido e voltar a mim      de mim esquecido
 
- hoje fico     sem saber como nem porquê
quieto     na quietude solene do meu canto
onde te leio     e te espero     demoradamente 
e só
 
- e sonho…
sonho o fogo fátuo da paixão que arrebata
o querer e quebra a vontade e esquece a razão
e vejo esse fogo no seu crepitar
consumir-se eternamente no tempo
e diluir-se no tempo sem se apagar
 
- nada é eterno     penso…
 
- recordo os meus dedos nas minhas mãos
fora já do ventre da minha mãe      parida…
abriam-se e fechavam-se sem parar
querendo abarcar o espaço
agarrar o mundo e o tempo
para lá das trevas existenciais da vida
 
- e gritava      não chorava      gritava!
gritava ao mundo a revolta desta clausura
eterna e vazia em que o homem vive nove meses
sem liberdade numa prisão de luz
recheada de promessas ocas e certezas
amargas que ele há-de viver um dia
 
- um dia      longínquo vem-me agora à memória!...
um dia em que eu amei uma virgem
no sabor das ondas salgadas do mar
de noite com estrelas de vida
e debaixo da chuva rolei
na selva longínqua
para além do mar
 
- nesse dia eu amava-a     até     se preciso fosse
debaixo da lava vermelha a brotar
daquele vulcão que acordou o desejo
e rompeu o meu peito
de tanto amar
 
- amei      sílaba a sílaba      a forma dos seios
que lhe emolduravam o peito
e com tal jeito
os limites do seu corpo exausto e suado…
ensaiámos colados na boca um do outro
sonetos eróticos em danças de línguas
sons de violino      vibrantes acordes
até cairmos de cansados
para o lado
 
- e agora      quero partir para longe
partir sem estar submisso à sorte
partir nas asas do vento
para mundos distantes
onde não sinta o espectro da morte
 
- quero partir e sonhar canções dentro da noite
embalar-me na penumbra de silêncios
onde sibilem estrelas sem céus de lágrimas
choradas,
onde não haja rosários de dores
e se afaguem os sonhos perfumados
no sabor das palavras inventadas
 
- quero partir     sem ouvir falar de nós,
e ficar com memórias de silêncio
sem sofrer
pelo nada que dissemos um ao outro
ao longo duma vida...
sentir em desalinho sentimentos desencontrados
e momentos que não soubemos decifrar
que ficaram nas palavras por dizer
 
- quero partir      nos versos que não quis
saborear a paisagem sem os aromas
da vontade
numa tarde sem idade
 
- quero sentir o delírio das ondas do teu corpo
que não tive mas que vive em mim
em revolta sufocado,
e partir nessa noite em que me perco
e me encontro neste enredo
no prazer dessa busca sem sentido
na páginas do meu medo
 
- e penetrar na paz incómoda do silêncio
da noite     com passos discretos
onde o delírio dos sexos se afundam
em poços secretos...
deixai-me viver...
deixai que eu persiga os passos gravados
nos segredos que invento,
na obsessão do beijo que desagua
numa face ao amanhecer
e procurar no reflexo do um corpo
o meu último desejo gravado com o sémen
do prazer
 
- mas as fissuras da noite incomodam
diante desse grito que ecoa no ar
no infinito de místicas línguas que dançam
de corpos que se esquecem de saber respirar
- e pesa-me     no peito     um resíduo de saudade…
falta-me o tempo para te saber olhar!
fujo para o infinito de mim mesmo
onde me afago em recordações de prazer…
volto ao princípio da memória
e deixo-me depois adormecer
 
- olho as flores ao morrer do dia que se fecham
assim…
por esses enigmáticos campos além
como quem mergulha para dentro
de si mesmo e cisma e prefere à vida
a agonia...    vejo nos esqueletos dos troncos
caídos retratos e restos de mim!
 
- fala-me baixinho…     sim      fala-me baixinho
em silêncio      até      se tu puderes
sussurra-me cantigas para adormecer…
agita-me no teu embalo...
murmura-me apenas as palavras
que me souberes dizer
que eu leio nos teus lábios
aquilo que tu quiseres
 
- deixai-me ir…     deixai-me ir pela noite vazia
mesmo que seja com passo
de quem não quer ir…     quero sentir
o meu rosto molhado pela chuva fria
       e nos mistérios da noite
ensaiar um novo porvir
 
- deixai-me ir alheio ao meu ser…
deixai que a chuva fustigue o meu rosto
e caia cansado numa esquina qualquer
e recolhido qual mortalha
pelos cuidados duma Maria Madalena Mulher

- deixai-me ser como os gatos ou    na sarjeta      os ratos
na busca dos restos e viver sem guarida
deixai-me arrastar pela noite escura
à procura de mim sem me encontrar
perdido da vida
 
- deixai-me ir pelas encruzilhadas dos caminhos
terríficos      onde as bruxas se volteiam
no bater da meia-noite...
deixai-me ir por essas encruzilhadas
que não têm só seres apenas maléficos
nem só silhuetas negras      nem só bruxas
nem só artifícios maus      tétricos
 
- no tremeluzir das velas hesitantes
também têm recordações dos ausentes
e deuses e presenças invisíveis      às quais    
os crentes ou até mesmo os ateus
quando ali passam tiram o chapéu e se persignam
e rezam em surdina uma oração
que eu não sei dizer
«Deus seja louvado…    louvado seja Deus»
 
- deixai-me ir     e que venham relâmpagos     e raios    
e coriscos fustiguem e habitem este eu inacabado
entrem pelas janelas sem vidraças      pelas portas
escancaradas      pelas paredes sem telhado
estalem tudo      partam tudo      arranquem tudo
e deixem nada em todo o lado
atirem-me à vontade as tais pedradas
ah! arranquem…     arranquem tudo e estilhacem...
estilhacem os vidros que não houve     arranquem
as cortinas que não há…      sim!
massacrem-me os ouvidos com satânicas
e terríficas e mortíferas gargalhadas

- desdobrem-me os caminhos que por mim
tão desvendados
os meus passos percorreram já mil vezes
em estradas poeirentas      enlameadas
pelos montes      e serras      e quebradas
fizesse chuva ou mesmo vento...
troquem-me as voltas.
sim!       troquem-me as voltas todas
enleiem-me em vossas curvas mal traçadas
tentem que não seja o que ainda sou…
que meus passos me levam
e levarão
onde sempre quero ir     e sei que vou!
 
- eu prefiro     eu defino     eu restrinjo     eu escolho
eu sou dono da Vontade
e nas derrotas é que avanço!
mas recuo tantas vezes apesar da minha idade
pois saber reconhecer que se perde
é que é ser Homem!
e chorar      também é de Homem!...
e parto      e começo      e recomeço outra vez
de renúncia em renúncia
e luto     e esfrangalho este meu ser
na procura da verdade
luta em luta mesmo até que perca a guerra
não sou homem p’ra desistir e ter descanso!
 
- muito menos para perder ou ser vencido...
lutei e luto     sempre!     e aguerrido
na busca do ideal eu lutarei...
ainda que de Nenhum-Reino eu seja Rei!
Alvaro Giesta
Enviado por Alvaro Giesta em 12/02/2008
Reeditado em 21/02/2008
Código do texto: T856027
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