A MONTANHA MORNA

eu estava nu meu espelho
o navio branco me abraçou
às treze horas de um ano da minha adolescência
levei comigo três bombons de hortelã
a cidade inteira dentro de uma lágrima
meu único sol lamentava as sardas que me fizera
minha pipa com rabo de pijama
abandonou meu carretel de linha
chorei a cidade submersa
não lembro de meus irmãos
ma eles estavam ali
vestiam a mesma dor
as rodas de meu carro eram feitas de sandálias
a cabeça do minotauro um transplante bizarro
me inquietava na viagem
o ornitorrinco mamífero ovíparo
seu bico de pato deixava-me horas
com o olhar na imagem mais perfeita que desenhei
eu só queria ser um alfaiate
embainhar as calças de carlito
mover um século pregando botões em camisas chinesas
engomar o paletó do príncipe dos poetas
costurar um dicionário em sânscrito
e deixá-lo dormindo na biblioteca de ilton ribeirinho
no vai e vem das agulhas
furar os dedos
pela ausência de dedais
propositadamente não usaria dedais
a dor é indiferente para quem habita montanhas mornas
mas o navio branco deserdou-me
da cidade submersa
avisto apenas o galo enferrujado
na torre da igreja líquid’alva de outrora
onde peixes acariciam os santos
comungando o limo no altar do senhor

Edmir CARVALHO BEZERRA
Enviado por Edmir CARVALHO BEZERRA em 30/12/2005
Reeditado em 30/12/2005
Código do texto: T92377