A dor que dói em mim

“A dor não me perturba enquanto dor,

mas dói-me a dor que dói no meu irmão.”

Alvacir Raposo, O pássaro e a arca, pág. 15.

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Incrível dor, que dói e não tem fim,

que me maltrata e não sei definir

se dói ou causa angústia o ter de ouvir

a dor do meu irmão que dói em mim.

Incrível dor que me corrói, assim

como se fosse a mente em combustão,

como se fosse um céu sem luz, que não

me mostra outros caminhos, não tem cor.

A dor não me perturba enquanto dor,

mas dói-me a dor que dói no meu irmão.

Morto por cólera, por mina ou fome,

um pobre morto sem saber por quê,

um ser humano a menos, pobre ser

que já se foi sem nem firmar seu nome

em nossa história. Tudo se consome

ao meu redor. Estou na contramão

e me atropelo neste mundo-cão

que vive sem ternura e sem amor.

A dor não me perturba enquanto dor,

mas dói-me a dor que dói no meu irmão.

Um maltrapilho cruza o meu caminho

e me apresenta todo o meu reverso,

aquilo que não vejo e vive imerso

em outros planos, sem porvir, sem ninho;

e a dor me toma o ser, devagarinho

e sem parar, a dor me prostra ao chão,

meu ser se desfigura e, em gesto vão,

aceno com a cabeça o meu pavor.

A dor não me perturba enquanto dor,

mas dói-me a dor que dói no meu irmão.

Sirenes tocam longe, sem cessar,

anunciando a dor da humanidade,

a dor do medo, a urgência, a insanidade,

e em minha mente eu sinto o martelar

dessa impotência que me embaça o olhar

e não me traz qualquer explicação.

O mundo, fervilhando, em combustão,

aumenta ainda mais o meu torpor.

A dor não me perturba enquanto dor,

mas dói-me a dor que dói no meu irmão.