A VIDA VISTA A PARTIR DE UM TREM BALA

A vida vista de um trem bala

Um pai certa vez disse ao filho pequeno: traga-me algo.

O menino respondeu: já vou.

Passados alguns minutos, repetiu o pai: meu filho, onde está o que lhe pedi? E ouviu como resposta: estou indo.

Passados mais outros minutos, a paciência do pai se esgotou e, aos gritos, insistiu: você não está ouvindo seu pai falar?

Resposta: calma, papai, daqui a pouco eu levo o que me pediu.

O pai, na sua impaciência e incompreensão daquele ato de “desobediência” do filho, pegou o pequeno e lhe deu umas “boas palmadas” pra ele “aprender a ser obediente”.

É familiar essa história pra você?

Pois é, quando somos ainda crianças nos custa muito entender os adultos e nós, por ser adultos, igualmente nos é difícil partilhar da esfera de tempo dos nossos filhos. É que elas são diferentes.

Quando eu era bem mais jovem, os meus minutos tinham mais segundos. O limite do tempo de espera era bem maior. À medida que o tempo foi passando, os segundos, juntamente com os meus sonhos, foram me deixando.

Quando nasceu meu primeiro filho, ele, pelo contrário, tinha minutos com tantos segundos e os segundos carregados de tantos sonhos que as minhas palavras e as minhas ordens soavam para ele como que fosse um eco na eternidade.

Meu filho traga-me algo. Isto para ele era como uma voz soando no meio das montanhas de sonhos. Já vou. O seu “já” para mim era muito diferente do dele. O meu “já” significava imediatamente e o dele significava um espaço de tempo que só ele mesmo poderia me dizer, mas no seu vocabulário infantil faltavam palavras para se expressar.

A minha insistência em pedir novamente que me trouxesse algo demonstrava claramente que o meu tempo era diferente do dele, mas nem eu e nem ele entendíamos um ao outro porque estávamos vivendo em esferas cronológicas completamente diferentes.

Os meus posteriores gritos para que as minhas ordens fossem cumpridas de imediato, demonstravam como o meu tempo era exíguo em relação ao seu. E a sua atitude ao me pedir calma, mostrava quão sereno trabalhava seu relógio interior.

Meditava a respeito disso ao viajar recentemente num trem de alta velocidade. Comigo mesmo pensei: eu quando criança a minha mente viajava num trem Maria Fumaça a partir do qual eu podia olhar as paisagens, sentir os distintos aromas do campo e contemplar até a beleza de um ninho numa árvore à medida que o trem serenamente avançava até a estação final. Hoje, num trem de alta velocidade, percebi que quase nada posso ver dos cenários e do espetáculo que os campos de outrora me proporcionavam.

Hoje meus minutos estão ainda mais pobres do que quando eu era um jovem pai. Por outro lado, os meus filhos, agora adultos jovens, também mudaram seus minutos e começam a experimentar aquela sensação que eu tinha de pressa quando lhes pedia algo. Entretanto - que interessante é a vida – hoje quando eles querem algo parece que tudo tem que ser imediato, mas nossos relógios do tempo continuam tendo ainda diferença de segundos.

Hoje, a experiência da idade me leva a economizar os segundos. Hoje é como se cada um dos meus segundos precisa render mais e mais para que não se acabem rapidamente. Agora, invertemos os papéis, os meus filhos precisam regular seus relógios para poder partilhar a esfera de tempo dos meus sonhos. A paciência agora deixou de ser uma exigência para o pai, agora é para os filhos.

As coisas que eu não entendia no passado para mim hoje são tão simples de entender. Quando os sonhos da vida começam a minguar, acordamos e aí a paisagem do novo dia nos mostra uma realidade que faltava nos sonhos. Quando somos crianças os sonhos permeiam nossas mentes. Eles vêm e vão lentamente como numa viagem de trem Maria Fumaça. Quando nos aproximamos da estação final, os sonhos, já um tanto rarefeitos, passam por nós como que estivéssemos contemplando miragens num trem de alta velocidade.

Hoje eu entendo o que não entendia no passado. Acho que é por isso que os avós desfrutam tanto dos seus netos e dizem que a experiência de ser avós é ainda mais gratificante do que ser pais. Também os netos parecem até entender mais os avós que os próprios filhos, claro, porque estão nos opostos, extremos.

Quando o avô diz traga-me algo, aliás, ele não diz traga-me algo, ele agora sabe que os segundos precisam ser espremidos até que saia deles a última parte da seiva da vida e, por isso, eles não mais pedem, não mais dão ordens, eles apenas trazem para os netos aquilo que foi colhido da percepção de suas viagens nos trens Maria Fumaça. Seus sonhos, seus aromas, o frescor das ervas do campo, tudo tempera suas histórias tão apreciadas pelos seus netos.

Na experiência vivida, quando esses dois trens se cruzam, nenhum dos dois tem tempo suficiente de apreciar um ao outro porque estão vivendo em tempos cronológicos diferentes. Os relógios dos dois trens trabalham de forma diferente, os minutos de um são diferentes dos minutos do outro. Felizmente, a todos nós nos é dado a oportunidade de mesmo estando vivendo em um trem poder sonhar que estamos vivendo no outro. Podemos ser velhos sendo ainda crianças, mas, também, podemos ser crianças, ainda que sejamos velhos

djalma marques
Enviado por djalma marques em 14/01/2013
Reeditado em 26/07/2013
Código do texto: T4083990
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