Também um pouco de gente

-E é quem é? E é quem é?

Só pode ser a Núbia, né.

E não é Núbia qualquer.

É a Núbia do Nazaré!

Doméstica, humilde, reservada...

Apareceu um dia como a solução da lavoura:

lavava, passava roupa, usava bem a vassoura.

Naturalmente bons predicados,

somados a outros mais,

que incluíam cuidar de criança,

da economia doméstica e das finanças...

O que enriquecia qualquer curriculum vitae.

Não ágil, mas débil, é como se revelou

esta estranha mulher, de ar apagado,

procedendo como se fosse um robot,

com programa limitado a um ou dois dados.

Cabeça oca, memória fraca, incapaz de decidir.

Daí a comparação do seu QI inelástico

Com o da ameba,

ou talvez da samambaia... de plástico.

Quando falava dava sempre um escorrego: Inhora, seu Sibério....

Trocava nomes: seu Lamego por seu Chamego...

Acreditar no que ela dizia era pura temeridade.

Nunca sabia o que fazia

e era de irracional teimosia.

Mas era um poço de virtudes

no seu dia-a-dia, na sua solicitude.

Empregada de confiança da patroa,

carteira assinada, leal,

entregava o próprio patrão,

mesmo sem saber o mérito da questão

nem sentir a natureza do mal.

Doméstica, no sentido lato do palavra;

lerda, quase nunca via o leite pululante

derramando no fogão-borbulhante-

enquanto fitava solenemente o horizonte...

Inconsequente, confundia vinagre com detergente,

Lavava pratos e panelas

como podia, como a cara dela.

Nada fazia diferente

sem um novo input aparente...

Gostava de televisão, seu mundo paralelo.

Acreditava no que via

e jurava pelo que se dizia...

O cigarrinho era sua companhia, seu marido.

Sabia de estórias mirabolantes

do seu mundo da roça,

do seu mundo de antes.

Hoje perdeu os hábitos do sertão.

Já não acorda tão cedo

e só levanta sob pressão do patrão.

Já não é toda meiga e calada,

mas até um tanto malcriada.

Assim parece ser a Núbia do Nazaré.

No âmago da sua alma,

no entanto, havia um ser carente,

sofrido, que a vida macerou...

Não teve infância, nem carinho...

Talvez nem sonhos...

Nunca foi a escola em nenhuma idade.

Era apenas alfabetizada, pela patroa.

Se tornou triste, máquina, assexuada...

Pessoa tímida e reservada...

Quando ria, ria do nada

numa lógica apalermada.

Do próximo pouco recebeu, nem da vida...

Talvez um carinho de colo, ainda bebê...

Carinho passageiro, no entanto,

que só deixou ânsias e porquês...

Já órfã, inda pequenina,

começou sua sina: fome e miséria

foram suas companheiras.

Algumas vezes se recolhia sozinha

ao seu quarto...Seu mundo, sem acalanto.

Nunca a vi chorar. Mas o seu ar, seu semblante,

exalava uma humildade selvagem,

quase de bicho acuado.

Apesar de triste e reservada,

sendo mulher, era vaidosa.

Mas de uma vaidade simples do interior.

Vaidade denunciada na troca do avental

por um vestido formal

só pra ir comprar, na esquina, o jornal...

Que lia depois do patrão, já amassado... Soletrando!

Núbia do Nazaré!

A dona do serviço pesado da casa,

a barriguda de lenço no cabelo,

andar pesado,

que adorava tomar banho quente...

Núbia do Nazaré: curiosa!

complicada, voz defeituosa...

Núbia, Núbia, pessoa excelente!

Núbia do Nazaré:

também um pouco de gente!