CONFINAMENTO / PEDRAS FAMINTAS / FREQUÊNCIA ELEVADA / CEREJEIRAS

CONFINAMENTO I (30 JUN 79)

Restos mortais revejo do passado

A cada vez que enfrento os sonhos tidos,

Pois quantos descobri, bem esquecidos,

Recobertos de poeira, em bem guardado

Arquivo multicor de meus neurônios,

Sinapses douradas de quimeras

Encefalorraquídeas... Bem puderas

Um campo santo encher de meus demônios,

Que enfim, de desnutridos, titubeantes,

Ante os sonhos mais novos, turbulentos,

Sorriem gargalhares desdentados

E ficam vegetando, apatetados,

Nos velhos gavetões, já borolentos,

Só evocados à memória por instantes...

CONFINAMENTO II (2 MAI 10)

Contudo, ao exumar restos mortais,

nem sempre é crânio ou cadáver que se encontra,

ou múmia sorridente numa montra,

adormecida há trinta anos ou mais...

Pendurei velhos rascunhos nos varais,

centenas deles havia, mas sem poeira,

recuperados da memória verdadeira,

inspecionadas as adriças e os estais

desse meu barco descomissionado,

que permanece ao gosto da maré,

nessa praia de corais acinzentados,

há tantos anos o casco enferrujado,

quando a âncora soltou-se do sopé,

lançando à praia os fardos amarrados.

CONFINAMENTO III

Permanecia a carga nos oleados

tão pura e íntegra como no começo,

pagando da pureza o caro preço,

com seus arquivos desatualizados...

Que cada fardo que a abrir me apresso

contém lembranças desses tais passados

que no passado não estavam olvidados,

porém que agora de lembrar me esqueço.

Mal recordo esse passado em que os lembrava:

a vida ainda ricamente passo,

que me envolve em quimeras muito novas.

E nem entendo de quanto me queixava,

nesse momento perdido em tempo e espaço,

quando me embalo em diferentes trovas...

PEDRAS FAMINTAS I

[para Wilhelm Heinrich Wackenroder]

Havia na Índia um santo

que andava quase nu,

nos costumes de um saddhu,

peregrinando sem canto.

Desprezava o riso e o pranto,

buscando a roda do tempo,

de constante movimento,

que nos causa tanto espanto.

Porque a inteira humanidade

passa todos os seus dias

se esforçando em busca vã,

buscando a fome da idade,

na ciência ou nas magias,

inverter com todo o afã.

PEDRAS FAMINTAS II

Anda o santo pelas ruas,

buscando sempre essa roda,

muita gente ele incomoda,

mostrando suas coxas nuas.

Até que ele enxerga as gruas

com que o tempo nos engoda,

com que a humanidade toda

sangra e sua contra as puas.

Que a pétrea roda do tempo

nunca pára de girar...

Ele olha o movimento

e, por todo o contratempo,

não sabe como emperrar

ou travar esse momento.

PEDRAS FAMINTAS III

Porém, um dia, ele escuta

um casal de namorados,

os dois cantando, encantados,

uma canção que refuta

toda essa insana labuta

desses pobres esfalfados,

a lutar, atribulados,

em tal perene conduta...

E percebe, finalmente,

que a roda do tempo parte,

ao som dessa melodia,

interrompida somente

pelo amor ou pela arte,

ou pelo som da poesia!...

(Wilhelm H. Wackenroder,1773-1798, é considerado o pai do romantismo. Criador da "metafísica da música", teve uma vida meteórica, morrendo aos 25 anos... sem conseguir parar a Roda do Tempo.)

FREQUÊNCIA ELEVADA I (29 JUL 79)

Talvez fosse mais fácil que rascunho

Eu não tivesse desses meus sonetos

Que os dedos ligeirados, prediletos,

Os demarcassem diretos de meu punho,

Sobre essa máquina de datilografia.

Porém são tantos, ouve, não dá tempo,

Quando os antigos renovar contemplo,

Já me transformo em nova melodia.

Fico perdido nessa teia criativa,

Sou criatura da tapeçaria,

Sou fio bordado e sou o tecelão.

Sou pétala de flor, tão sensitiva,

Sacrificada na jardinaria,

Com que destilo o próprio coração.

FREQUÊNCIA ELEVADA II (5-5-2010)

Os românticos mostravam desconfiança

pela palavra escrita, que o secreto

apenas toca de leve e esse dileto

mistério vindo dos tempos de criança,

que se busca desvendar, com esperança,

é descrito de modo apenas reto,

enquanto é curvo o verdadeiro afeto,

que se agita perene e não se cansa.

Deste modo, minhas frases são fios baços,

repuxados da real tapeçaria,

que assim se pui e vai perdendo o brilho,

a cada vez que se descrevem traços,

enquanto os filamentos da elegia

se vão perdendo ao longo desse trilho.

FREQUÊNCIA ELEVADA III

E agora que digito o sonho antigo,

abandonada a máquina de escrever,

eu permaneço no mesmo desfazer,

porque rascunhos nunca dão abrigo

ao verdadeiro sentido do perigo,

que existe nos mistérios do querer:

a palavra me trai ao discorrer,

não acompanha o pensamento amigo,

com que queria a mim mesmo bordar,

nos fios de prata da tapeçaria

da construção interminável de mim mesmo,

com que queria minha própria flor plantar,

no solo fértil dessa fantasia

e só consigo espalhar flores a esmo!

CEREJEIRAS I (5-5-2010)

[para Mário Régis Sudo]

somente japoneses mediriam

o tempo em que uma flor de cerejeira

cairia do galho, em lenta esteira,

espiralando até chegar ao chão...

ocidentais apenas olhariam

para essa dança solene e seresteira,

os rodopios de uma pétala brejeira,

até esparramar-se em sonho vão...

mas eles têm, nos olhos amendoados

essa magia que flagra a natureza,

em seus momentos de plena nostalgia,

no mesmo giro dos séculos passados,

registrando em haikus toda a beleza

que vê na queda a autêntica poesia...

CEREJEIRAS II

mais que poesia, eu diria identidade

com a terra que os gerou, em sua pobreza,

nessa harmonia sublime de nobreza,

em linhas sóbrias de plena liberdade.

porque nipônica é bem esta verdade,

contida em branco e rosa de incerteza,

nesse constante revoar de realeza,

no volutear da pétala em saudade...

os tapetes se formam pelo chão,

os caroços renovam gestação,

úmidas cinzas o solo fertilizam...

igual que as cinzas murchas do vulcão,

de branco revestido em floração,

que o povo e sua cultura simbolizam.

CEREJEIRAS III

de rosa e branco o solo revestido,

a proteger a nova brotação,

retorcidas cerejeiras em mansão

que abriga o olhar a elas dirigido.

de cinza e negro o cume está vestido,

vigiando os passos da nova geração,

ao invés de assustador, puro guardião,

esse nobre fuji yama aos céus erguido.

reta a montanha, triângulo perfeito,

que se recorta contra os céus do oriente;

mas o voo dessas pétalas sujeito

aos caprichos do vento, frio ou quente,

e o tapete se forma, porque é feito

da melancólica leveza dessa gente...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 16/05/2011
Código do texto: T2972759
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