Meu testamento

Doação Plena

Jorge Linhaça

Quando eu morrer ficará cá meu corpo

Nada de cremação, que desperdício

Retalhem deste poeta já morto

O que possa ser d'algum benefício

Meus olhos iluminem os d'alguém

Os meus rins que resgatem outras vidas

Minha pele que recobra feridas

Meus pulmões a outros sirvam também

Se o meu coração for transplantado

que leve consigo a luz da poesia

Se o fígado for aproveitado

que prolongue de outrem os seus dias

Nada disso hei de levar pois comigo

Nada disso me fará falt'alguma

Mas terá serventia a um amigo

Cuja face jamais vi hora nenhuma

Vai o pâncreas, vai também o baço

Vão-se os ossos e também os tecidos

Questão de nada disso eu mais faço

Depois de ter meu corpo falecido

E o que não se puder aproveitar

Que se enterre sem nenhum aparato

Em uma pequena cova ao luar

quem sabe numa caixa de sapatos

Deixai-me partir pois pr'outra morada

Até que venha a tal ressurreição

Quem sabe seja ainda n'alvorada

Ou fique pro final da estação

O espírito sei que levarei

Com minhas qualidades e defeitos

Depois de julgado receberei

A recompensa justa dos meus feitos

Este pó que ao pó há de tornar

inda há de servir de alimento

A mil criaturas alimentar

E fecundar a terra em movimento

Nada mais levarei do que o que sou

despido desta já gasta matéria

Que meu espírito cá carregou

no decorrer desta minha odisséia

Doar não é querer ser imortal

é resgatar a vida de um irmão

Quem sabe mais de um e não é mal

Aos outros estender a nossa mão

Salvador, 16 de dezembro de 2011

Jorge Linhaça
Enviado por Jorge Linhaça em 17/03/2014
Reeditado em 20/03/2014
Código do texto: T4733004
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