CATATUMBA I-VI
CATATUMBA I
Quando se achega em cemitério de campanha
não é difícil encontrar a tumba aberta,
quebrada a tampa, a caveira está desperta,
os dentes amarelos, na arreganha...
Os ossos espalhados nessa estranha
armação calcinada de hora incerta...
Foi na peleia ou de doença esperta
que o campereou a morte na artimanha...?
Pior ainda, eu nem sei se foi peão
ou estancieiro, nem homem, nem mulher...
Se foi um raio que lhe abriu a sepultura...
Leves os ossos, na palma de minha mão;
não traz lembranças, nem nome sequer:
restou um punhado de gravetos sem ternura.
CATATUMBA II
Não foi, de fato, em tempo assim antigo
essa época em que havia revolução...
Pediu a china do seu coração:
"Não vai, Totonho, fica aqui comigo!..."
Disse o peão: "Não posso, é meu amigo,
como vou abandonar o meu patrão?
Desde piá que me estendeu a mão,
perdoa, amor, mas negar eu não consigo."
Ele ensilhou o cavalo em pobre apero,
vestiu o poncho, atou lenço encarnado,
adaga à cinta, partiu para a batalha.
Foi de má sorte, na poeira do entrevero...
Só lhe trouxeram o lenço colorado...
Pobre Totonho! Não teve nem mortalha!...
CATATUMBA III
Quais ossos secos de Ezequiel profeta
se revestem de carne em madrugadas
e suas vozes vazias, mendigadas,
reclamam posse da visão do esteta.
Tomam-lhe as mãos e os dedos como seta,
percorrem o papel em presepadas,
em palavras de amor, de ódio vazadas,
e nem sabe o que dirá o tal poeta...
que se percebe tão só como um escriba:
as vozes mortas aos ouvidos gritam,
terçando lanças por serem escutadas...
E o escrivão do verso, que se arriba,
rasga o papel com os ossos que o incitam
e só se lembra de dormir nas alvoradas...
CATATUMBA IV
A gente da fazenda era no alto
da coxilha em que fundam cemitério;
às vezes, havia até um eremitério,
sem eremita, é claro, no ressalto...
A gente dos peões ia no meio,
que a chuva as suas cinzas não levasse
de cambulhada com os patrões: ficasse
cada esqueleto no seu devido esteio...
Os escravos ficavam mais embaixo,
não eram muitos mesmo, o meu Rio Grande
sempre foi mais espanhol e português...
E a indiada braba era amontoada em cacho,
mortos jogados por onde Deus os manda,
que só havia lugar para esses três...
CATATUMBA V
Foi depois que surgiu a ferrovia,
quando o povo não estava acostumbrado...
Foi um peão no trilho atropelado,
sangue espalhado até nem mais se via...
Os pedaços recolheram no outro dia,
pelo menos o que não foi devorado
por gatos e cachorros, espalhado,
que para autópsia nem sequer havia.
Levantaram no lugar a capelinha
que o povo apelidou de "catatumba"
e que ainda cuidam por força de promessa...
Está ali até hoje, a pobrezinha --
dizem que a voz do morto ainda retumba
quando o minuano de assoprar não cessa!
CATATUMBA VI
Lá nas lonjuras, soledade de distância,
desmorona o cemitério de campanha,
há muito abandonado na artimanha
do espinilho e dos cabritos dessa estância.
Tempo houve que o cuidavam com constância,
mas hoje a terra pertence a gente estranha
e a caveira que os dentes arreganha
já nem tem mais parentes nessa instância.
Seus descendentes moram na cidade;
outros mudaram até para outro estado,
quando muito algum se lembra nos Finados.
E é tão remota essa localidade
que o sepulcro por ninguém mais é caiado,
morto também nos campos descuidados...