A minha musa

Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes.

-- Ovídio

Minha Musa não é como ninfa

Que se eleva das águas - gentil -

Co'um sorriso nos lábios mimosos,

Com requebros, com ar senhoril.

Nem lhe pousa nas faces redondas

Dos fagueiros anelos a cor;

Nesta terra não tem uma esp'rança,

Nesta terra não tem um amor.

Como fada de meigos encantos,

Não habita um palácio encantado,

Quer em meio de matas sombrias,

Quer à beira do mar levantado.

Não tem ela uma senda florida,

De perfumes, de flores bem cheia,

Onde vague com passos incertos,

Quando o céu de luzeiros se arreia.

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Não é como a de Horácio a minha Musa;

Nos soberbos alpendres dos Senhores

Não é que ela reside;

Ao banquete do grande em lauta mesa,

Onde gira o falerno em taças d'oiro,

Não é que ela preside.

Ela ama a solidão, ama o silêncio,

Ama o prado florido, a selva umbrosa

E da rola o carpir.

Ela ama a viração da tarde amena,

O sussurro das águas, os acentos

De profundo sentir.

D'Anacreonte o gênio prazenteiro,

Que de flores cingia a fronte calva

Em brilhante festim,

Tomando inspirações à doce amada,

Que leda lh'enflorava a ebúrnea lira;

De que me serve, a mim?

Canções que a turba nutre, inspira, exalta

Nas cordas magoadas me não pousam

Da lira de marfim.

Correm meus dias, lacrimosos, tristes,

Como a noite que estende as negras asas

Por céu negro e sem fim.

É triste a minha Musa, como é triste

O sincero verter d'amargo pranto

D'órfã singela;

E triste como o som que a brisa espalha,

Que cicia nas folhas do arvoredo

Por noite bela.

É triste como o som que o sino ao longe

Vai perder na extensão d'ameno prado

Da tarde no cair,

Quando nasce o silêncio involto em trevas,

Quando os astros derramam sobre a terra

Merencório luzir.

Ela então, sem destino, erra por vales,

Erra por altos montes, onde a enxada

Fundo e fundo cavou;

E pára; perto, jovial pastora

Cantando passa - e ela cisma ainda

Depois que esta passou.

Além - da choça humilde s'ergue o fumo

Que em risonha espiral se eleva às nuvens

Da noite entre os vapores;

Muge solto o rebanho; e lento o passo,

Cantando em voz sonora, porém baixa,

Vêm andando os pastores.

Outras vezes também, no cemitério,

Incerta volve o passo, soletrando

Recordações da vida;

Roça o negro cipreste, calca o musgo,

Que o tempo fez brotar por entre as fendas

Da pedra carcomida.

Então corre o meu pranto muito e muito

Sobre as úmidas cordas da minha Harpa,

Que não ressoam;

Não choro os mortos, não; choro os meus dias

Tão sentidos, tão longos, tão amargos,

Que em vão se escoam.

Nesse pobre cemitério

Quem já me dera um lugar!

Esta vida mal vivida

Quem já ma dera acabar!

Tenho inveja ao pegureiro,

Da pastora invejo a vida,

Invejo o sono dos mortos

Sob a laje carcomida.

Se qual pegão tormentoso,

O sopro da desventura

Vai bater potente à porta

De sumida sepultura:

Uma voz não lhe responde,

Não lhe responde um gemido,

Não lhe responde urna prece,

Um ai - do peito sentido.

Já não têm voz com que falem,

Já não têm que padecer;

No passar da vida à morte

Foi seu extremo sofrer.

Que lh'importa a desventura?

Ela passou, qual gemido

Da brisa em meio da mata

De verde alecrim florido.

Quem me dera ser como eles!

Quem me dera descansar!

Nesse pobre cemitério

Quem me dera o meu lugar,

E co'os sons das Harpas d'anjos

Da minha Harpa os sons casar!

Poeta Dom Casmurro
Enviado por Poeta Dom Casmurro em 11/02/2011
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