NATALÍCIO I-XII

natalício i

se um dia fores minha, entre meus dedos

serás buquê de flores redolentes;

cada um de teus poros reluzentes

mostrará de outras flores os segredos.

se um dia fores minha, a aliança

não será tão somente anel de ouro;

anel de carne será, sem mais desdouro:

teu corpo inteiro um lacre de esperança.

se um dia fores minha, teu perfume

recobrirá meus pálidos desejos

e me aportará novas ternuras.

a troco desses anos de azedume,

em que perdi a multidão de ensejos,

só na esperança de ocasiões mais puras.

natalício ii

se eu encarar amor, na displicente

candeia de uma prece cristalina,

será fonte de fogo e bem divina,

que não resfriará sequer a mente.

meu corpo inteiro se fará presente,

que a fonte desse amor queima e calcina,

a água borbulhante me domina,

em luz de lamparina iridescente.

se eu encarar amor, nessa tolice

de esperar que seja o quanto espero

e desejar que seja o que desejo,

não matarei a sede que te disse

dominar em meu peito, já que quero

é esfacelar-me no aroma do teu beijo.

natalício iii

a flor do esquecimento é adamantina,

líquida flor de ríspido fulgor,

cálida flor de pálido amargor,

sedentária esta flor da peregrina.

a flor do esquecimento se amotina,

contra o amplo pendão perdura a dor,

em tal cinzel se apaga a luz do amor,

que a flor do esquecimento é disciplina.

a flor do esquecimento então rebrota

várias vezes ao dia, renitente,

por mais que cortem os brotos do verão.

e novamente escorre, gota a gota,

nessa lembrança contínua e indiferente,

enraizada no próprio coração.

natalício iv

muito mais vivo é o fruto da memória,

tão diferente hoje do que era:

já foi caroço, enraizou na espera,

alimentou-se de esterco e até de escória.

depois... um leve caule sobe à glória

do ideal feliz que a luz da manhã gera:

não foi sol esse fruto, quem lhe dera!

porém bebeu do sol e fez-se história.

botou tronco, cresceu, ramos e galhos,

por entre as folhas um mísero botão

perdeu as pétalas após a brotação,

tornou-se fruto somente em atos falhos,

porém só lembra a mordida o coração,

nesse sabor renovado dos atalhos.

natalício v

já se perdeu no espaço este brasão

que anunciava a heraldia da nobreza:

fui um arauto mudo, com certeza,

não achei boca no meu coração,

não tive ouvidos em qualquer pulmão,

nem restam olhos para ver beleza:

meu fígado e meus rins, estranha reza,

em verde bile me escorrem pela mão.

não têm mais paladar meus intestinos,

minha bexiga não percebe quaisquer cheiros,

nem sequer sentem meus ossos o calor.

meu cérebro perdeu-se em desatinos,

nesse destino azul dos corriqueiros

versos presentes quando ausente é amor!

natalício vi

se eu desejar apenas mais poemas,

em que o impossível tão só transcreverei,

as maçãs de teu rosto esquecerei,

em troca da expressão de frágeis lemas.

mas se eu quiser, ao contrário, que tu gemas

entre meus braços, então insistirei:

que seja meu o corpo que busquei,

enquanto olvido dos versos as centenas.

que seja então o meu ideal de fome

restaurado na ânsia de teu beijo:

dois corações batendo um só afeto;

e que tua carne a carne minha dome

e nunca mais eu troque tal ensejo

pela cadência do verso mais completo!

natalício vii

acontece que preciso ter cuidado,

na multidão de versos, solta a esmo,

que não plagie a torrente de mim mesmo,

na própria vida dos versos atolado.

se quiser presentear-te um verso alado,

precisarei abrir mão de teu abraço.

tal é a poesia em seu estranho traço:

só em tua ausência tenho a musa ao lado.

porque são ciumentas estas nove

filhas de apolo, que tanto me dominam

e que se afastam no instante do prazer,

em todo o orgasmo por que amor se move,

calam-se as vozes que dia e noite ensinam,

dando poesia em troca do viver...

natalício viii

na aula magna em que o amor destoa

teu rosto apenas eu contemplarei.

no instante da palestra te verei

como a palavra maior que em mim ressoa.

e enquanto fico surdo à voz que entoa,

por entre tuas pestanas olharei

e lágrimas furtivas beberei,

engalanadas de esperança boa.

é sob o teu olhar que escondo o meu,

na busca tênue da paixão secreta,

doce o teu rosto como é doce o anelo.

meu ombro apenas a roçar no teu,

nessa intenção casual, porém dileta,

em que possuo teu rosto só de vê-lo.

natalício ix

se me perder de ti, na mágoa pura,

a noite será um sonho cristalino

e o arfar de tuas narinas, qual um sino,

me atrairá para meiga sepultura...

pois se me entrego inteiro à tua ternura,

morre parte de mim e meu destino

(por mais pareça tal fado até divino)

se cumprirá em plena escravatura.

e aquela face que ansiava liberdade

e que explodia em versos delicados,

talvez se fenda e parta internamente,

em ti jazendo, pela eternidade,

no cemitério dos sonhos descartados,

só pertencendo a ti inteiramente.

natalício x

mas se me entrego a ti tão amplamente,

devo quebrar o espelho da magia

e nunca mais tecer a fantasia

que povoou meus campanários permanente.

que nessa entrega, aquilo que se sente

é a real dissolução da antiga via,

a ingratidão à musa que me guia,

o estilhaçar da alma descontente.

embora saiba que nunca o exigirias,

meus versos cessarão de percutir

na ponta de meus dedos, em cadência.

e assim, se junto a mim permanecias,

meus sonhos, um a um, veria fugir,

talvez em busca de melhor querência.

natalício xi

a flor do esquecimento fez-se carne

e habitou em meu peito, emurchecida.

aqui se alimentou, foi revivida

e enraizou-se nas malhas da exclusão.

a flor do esquecimento, sem que par ne-

nhum achasse para sua acolhida,

espalhou-se por mim, na consentida

ação epífita de tal dominação.

mas pouco a pouco, em tal desilusão,

perdi o foco da vida e o interesse,

nessa paixão tão só do esquecimento.

que refloriu em um único botão,

nesse esplendor incúrio que padece

quem viveu na indiferença do tormento.

natalício xii

a gente morre aos poucos, dia a dia:

o sol nos mata, o ar e o alimento.

cada elemento que nos dá sustento

de nós retira a vida fugidia...

a gente vive, porém, enquanto ansia

pelo futuro, em pleno ferimento,

elaborando assim mosto e fermento,

o peito enchendo dos ares da magia.

mas ao cessar a esperança que me deste,

foi-se depressa o vigor em que me viste,

cessou o combate assim que a morte afasta.

e enquanto, em indiferença, me esqueceste,

por esse esquecimento me traíste

e, nessa tua traição, tu me mataste.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 24/03/2011
Código do texto: T2867083
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