HEOTONTIMORUMENOS 1-6 & AMOR E SEXOR 1-6
HEOTONTIMORUMENOS I (22 mar 11)
(Heautontimorumenos [O Atormentador de Si Mesmo], peça do dramaturgo romano Terêncio; o título foi tirado de um diálogo do filósofo grego Platão e, mais recentemente, Charles Baudelaire incluiu um poema em As Flores do Mal, com a grafia do título supra.)
Meu verso é esperma como tinta branca,
lançado a fecundar a branca mente;
penetra o verso em labirinto e sente
qual se a cocleia, até então estanca
se inundasse de líquidos e a frialdade manca
se aquecesse de mim, verso potente,
como o ventre se aquece no inclemente
momento em que tudo se destranca...
E como vibra então o teu estribo!
O martelo se esbate, firmemente
sobre a bigorna e ainda mais ressoa
o tímpano sob os golpes desse antigo
ressoar de rimas e então, furiosamente,
num orgasmo de métricas se escoa!...
HEOTONTIMORUMENOS II
Meu verso é sêmen, como negra tinta
que os olhos te fecundam, de repente:
ao leres o que escrevo, incontinenti,
imagem nova por si só se pinta
em qualquer ponto sideral da mente
e ordena à adrenalina, numa finta,
que te acione o coração, para que sinta
uma emoção, que é igual e diferente
dessa que pus, como semente, em verso,
para que se reproduzam as ideias
e sobretudo, que retinam harmonias
e que esse canto, em teu ceifar disperso,
produza espigas quais as epopeias
que se travaram nas minhas fantasias.
HEOTONTIMORUMENOS III
Meu verso é sangue vertido pelas veias,
coagulado assim em tinta preta;
cada sangria uma missão secreta,
cada segredo mensagem que receias.
A minha palavra é tessitura e teias,
ao te envolver em maldição dileta:
cada ferida outra ilusão excreta,
bem claramente ou por palavras meias.
E desse modo, me torno infeccioso,
contaminando em cada transfusão
com esta minha doença da poesia,
que me domina, no rufo tendencioso
da diástole e da sístole, em paixão
por esse mundo além da fantasia...
HEOTONTIMORUMENOS IV
Meu verso é soro a insuflar-te vida,
as gotas pingam, tão só uma por vez:
mas se acumulam, em sua sensatez
e tuas tristezas levam de vencida,
nesse momento de erudição contida,
nesse combate lento e sem dobrez,
contra toda depressão que nalma vês,
proclamação de coragem desabrida!
Porque estes versos são escritos para ti:
são apenas arcabouço e esqueleto,
a carne é tua sobre o manequim.
Só faço o esboço daquilo que sofri,
nessa esperança de alcançar o teu afeto
e que teus versos retornem para mim.
HEOTONTIMORUMENOS V
Teu verso que ainda espero, é ventre puro.
No encéfalo se contém frasco cinzento,
em que se gera diariamente o pensamento,
onde se vaga muita vez no escuro...
Teu verso eu quero que seja mais seguro,
em minha pretensão de julgamento:
eu te darei mil temas, a contento,
capazes de cruzar o vasto muro
das gerações que viram falsos versos,
sem verdadeira poesia; em tais paúis
só se avistam fogos-fátuos ardilosos...
Que à perdição te levam, nos dispersos
poços de lama, em que gênios azuis
apenas troçam de teus sonhos mais formosos.
HEOTONTIMORUMENOS VI
Em teu verso, caso eu gere essa intenção,
deves buscar um toque de beleza,
até no desencanto e na tristeza,
no melancólico ritual da depressão...
Quero que saibas que mil poemas vão
sobrevoando a Terra, com nobreza,
apenas a aguardar a breve reza
de teus dedos no teclado em que hoje estão.
Mas não esqueças que há quatro portais
para o universo dos poemas mais perfeitos:
métrica e rima, o ritmo e a cesura...
Quando os aceitas, os versos naturais
assim se formam e quase sem defeitos,
para escorrer de teus dedos com ternura...
AMOR E SEXOR I (2008)
Quando se ama, o corpo fica belo,
mais belo o corpo do que a luz do luar,
mais belo o corpo que a impressão do olhar,
o corpo é vida e luz em seu castelo.
Quando se ama, o corpo mais singelo
se reveste de esplendor quase sem par,
todo defeito faz-se dissipar,
porque é o amor que lhe atribui o selo
da pulcritude assim, em seu desvelo.
Não que lhe empreste beleza inexistente,
mas porque vê o que está subjacente.
Quando se ama, o feio entra em degelo,
só nos perfuma o desejo, com seus óleos,
se a própria alma é que reluz a nossos olhos.
AMOR E SEXOR II
Quando se ama o corpo, é só o belo
transitório do orgasmo de um momento:
passada a ânsia, o furor desse alimento,
bem diferente já se torna o zelo...
Quando se ama o corpo, seu capelo
é formatura transitória e sem alento:
graduou-se o sexo em gozo violento,
mas o amor se foi, sem mais desvelo...
Quando se ama o corpo, tudo acaba
e se veem logo defeitos, fealdade,
até onde, de fato, não existem...
Saciado esse sexor, se menoscaba
até mesmo a maior sinceridade
nas relações que em neblina só consistem.
AMOR E SEXOR III (26 mar 11)
Quando se ama o belo, o corpo vê-se
como pura expressão da raça humana;
o belo é belo quando se proclama
por nossos pares o amor que nos aquece.
Quando se ama o belo, então nos desce
a apreciação estética e dimana,
desde o espírito, essa pura chama,
a acalentar o corpo que perece.
Vê-se o belo na criança e em cada anciã,
vê-se o belo no cumpridor das leis
e vê-se o belo no fazedor do mal,
em que toda a diferença se faz vã:
se encontra o belo no mendigo e em reis,
pois tudo quanto é humano é natural.
AMOR E SEXOR IV
Quando se ama o sexo, pouco importa
qual seja o objeto do desejo:
é só questão de aproveitar o ensejo,
para esvaziar do sêmen a comporta.
Quando se ama o sexo, a retorta
em que fervilha o amor, em seu adejo,
é inconstante à luz de cada beijo:
o corpo é tudo e a gentileza é morta.
Qualquer parceiro ou parceira disponível,
desperta essa cobiça... por um pouco...
E qualquer um acaba desprezado.
Porque nenhuma paixão é inexaurível,
por mais que assanhe o ventre e o deixe louco,
passa o sexor e tudo é descartado.
AMOR E SEXOR V
Quando se ama apenas o momento
desse fulgor carmim de encantamento,
desse perfume vibrante de portento,
então vagueamos na luminosidade...
A alma toda em grilhão de liberdade,
a mente envolta em pura opacidade,
o coração perdulário em sua vaidade,
compartilhando o falso sentimento...
Quando se ama o próprio amor sentido
e não essa mulher que está lá fora,
mas tão somente sua expressão sensual,
nesse momento tudo é permitido,
feromonia que o corpo inteiro doura,
enovelada em amor de Carnaval...
AMOR E SEXOR VI
E quando se ama o amor, tão simplesmente
e se mastiga cada grão de aurora;
quando se bebe aos poucos cada hora
e a sensação se torna mais pungente;
se o amor se ama, também é indiferente
quem o objeto seja, muito embora
seja sombra fugaz em nosso outrora,
seja quimera que ao futuro se pressente
ou seja alguém com quem se corresponde,
mas sem ter visto ou nunca se encontrar
e em quem de se tocar nem há intenção;
ama-se o amor e pouco importa aonde,
no coração é que a visão se esconde:
nutrida a flama no sangue da ilusão.