SUSPEITAS (Contemplação) 1-14

CONTEMPLAÇÃO I

Em que recaem teus olhos neste instante?

E quem contempla coisa igual contigo?

Quer seja teu parente ou teu amigo

ou um mero conhecido insignificante,

a intimidade do momento compactante

me enche de ciúmes... Nego abrigo

a suspeita qualquer... Mas o jazigo

dessa visão casual, mas partilhante,

não se abrirá jamais. Nunca verei,

junto contigo, o que tu vês agora,

por mil vezes que enxerguemos coisa igual.

Esse é um momento que nunca encontrarei,

salvo no fundo desse teu outrora

que, para mim, será sempre irreal...

CONTEMPLAÇÃO II

Essa casca luminosa que contemplam

somente se desprende única vez,

vista por duas pessoas ou por três,

perde-se inteira em luminosidade.

Podes contar-me depois, então me alentam

as palavras que dizes, sou freguês

de tuas narrativas ou, se me lês

de tuas memórias a racionalidade.

E coloco meus ouvidos ao dispor

da descrição que sopra o teu alento

sobre esses fatos banais e comedidos;

mas como invejo sejá lá quem for

que estivesse junto a ti nesse momento

dos mil instantes para mim perdidos!...

CONTEMPLAÇÃO III

Invejo ainda as horas de lazer,

quando nas pálpebras teu olhar se perde,

em sonho ou devaneio que se herde,

descanso puro de muito quefazer.

Essas imagens que só tu podes ver,

velozes quadros ou imanente lerde,

escuridão vermelha ou prado verde,

que tão somente poderás me descrever.

Muito mais longe passas que comigo...

Mas por perto que estejas, finalmente,

por mais que o coração tenha presente

um amor indomável nesse abrigo,

eu sinto auto-piedade e estranho dó,

por todo o tempo em que te quedas só.

CONTEMPLAÇÃO IV

Dizem que isso é crime e até bobagem

o ciúme, que reveste o que é só nosso

e que teus olhos veem, alado fosso,

túnel aberto no cérebro selvagem,

camada que se mescla, essa estiagem

de sonhos e de fatos, tal endosso

de cantos infelizes, esse poço

de tíbia sensação ou de coragem.

Nem poderia essa emoção me pertencer.

Mas é que outros contemplam, juntamente,

a alma dessas coisas que assim bebes,

na indiferença de seu percorrer,

enquanto eu poderia, fielmente,

te engastar em cada jóia que percebes...

CONTEMPLAÇÃO V

Outro ciúme tenho, ao não ser visto

por teu olhar, que pousa em objetos...

Indiferentes que sejam tais afetos,

em nenhum deles a mim mesmo assisto.

Teu amor, desse modo, não conquisto,

porque o teu lugar em pontos quietos

se fixa... ou em outros mais diletos,

em movimento constante ou mesmo misto.

E, dessa forma, em minha inveja insisto,

por não ser alvo desse teu olhar...

São coisas mortas a razão de meu pesar,

mas é só para te achar que agora existo

e, ao ver que não me queres enxergar,

eu me sinto abandonado como um cristo!

CONTEMPLAÇÃO VI

É como se deixasses pelo olhar

uma parte de ti mesma em cada ponto;

cada parede provoca desaponto

em que fixaste o foco do enxergar.

Não foi a mim que viste, por me achar

bem longe de tuas vistas, no reponto

das marchas paralelas, contraponto

de nossos ritmos diversos a marchar.

Mas se olhasses para mim, me deixarias

andando sobre a pele, a tua visão:

algo de ti assim eu obteria...

Indiferentes, mas certeiras melodias,

alvejando essas pupilas coração

que só a ti entregue então seria...

CONTEMPLAÇÃO VII

Quem me verá, no despertar do vento?

Não sei mais quem espero, nem se espero.

Reduz-se a brisa em estertor de zero:

só me limito ao desespero lento...

Não que hoje me entregue ao desalento,

apenas não me envolvo mais com o mero

desejo encarquilhado em meu austero

contemplar indiferente, em catavento...

Já esperei mil vezes, sem que viesse

ter a meus braços senão a clara vela

que alimenta meu desejo em frágil luz.

E nem sequer recordo de uma prece:

só quero contemplar a mansa estrela,

porque o vento nada traz que me seduz.

CONTEMPLAÇÃO VIII

Num meio-dia azul serei contigo:

duas nuvens no céu, filtrando o vento;

o Universo inteiro será atento,

porque sem nós o mundo é qual jazigo.

Se te afastares, a vida está em perigo:

és tu que a guardas nas noites de relento;

quando aconchegas a ti meu desalento,

então a Terra vive o novo e o antigo.

Somente nos teus braços tenho abrigo:

na meia-noite o mundo é cor de mel

e os anjos se entreolham espantados.

Pois como pode o sonho que bendigo

transformar os pesadelos, tanto fel,

nesse momento em que gritamos abraçados?

CONTEMPLAÇÃO IX

Mas o que à mente mais me causa dano

é saber que outros olham o que vês,

ao mesmo tempo, nessa mesma tez

de luz que se derrama em tom arcano.

O vento sopra, no seu leve abano

e os olhares se mesclam, sem que dês

a menor conta do que lhes provês

e há maior intimidade nesse engano,

do que, se de propósito, buscasses

uma oferta de amor dar ao estranho

que contigo compartilha hora casual

e que de fora de mim mesmo tu deixasses,

sem o menor esforço nesse amanho,

todo o meu coração exposto ao mal.

CONTEMPLAÇÃO X

Ao mesmo tempo, contemplo também eu

coisas alheias em que me projeto;

meu cérebro revoa sob o teto,

nesse momento que não se torna teu.

E caso algum olhar se mescle ao meu

e se derrame sobre tal objeto,

será esse que partilhe meu afeto,

no estranho enlace que casual se deu.

Nessa carícia da contemplação,

em que a vida se refaz no próprio espelho,

projeta o olhar e o mesmo olhar devora,

sugando para a mente uma ilusão

de um mundo novo a recobrir o velho,

na solidão comum de nossa hora!...

CONTEMPLAÇÃO XI

"Vão-se os anéis, porém ficam os dedos",

ditado antigo, consolo na pobreza,

o nobre enfrentamento da incerteza,

triste vitória em meio dos degredos.

Falado com orgulho, entre segredos,

murmurado ao redor da parca mesa,

nessa inveja sutil, velha nobreza

a contemplar novos ricos, de olhos quedos...

Mas o real é justamente o oposto:

"Enquanto há vida, há esperança", dizem

aqueles que ao futuro são fiéis,

ao constatarem, para seu desgosto,

estas palavras que muito mais condizem:

que vão-se os dedos, mas ficam os anéis...

CONTEMPLAÇÃO XII

Por isso eu quero que teu olhar se enlace

somente com o meu. Não haja olhos

cujas vistas se dirijam aos refolhos

que de tua mente a brisa assim repasse.

Porque o efeito desse desenlace

é que algo de ti cubram antolhos

e que algo de outro, em frouxos molhos,

se projete e se dilua em tal perpasse.

Que somente o meu olhar no teu mergulhe,

sem que exista entre nós traição secreta,

por mais que nosso olhar incauto seja.

Para que o olhar de outrem não me esbulhe

de alguma imagem que tua mente afeta,

a cada vez que um novo olhar se enseja.

CONTEMPLAÇÃO XIII

Que já razão me sirva por ciúme

que contemples o céu, que todos veem,

que nesse azul do céu, corre também

a nuvem branca e cinza do azedume.

São milhares de olhares nesse lume,

pilões e almofarizes de meu bem,

que se reúnem nesse igual porém

e superam os meus, em tal costume.

Nem poderia com tantos competir,

não quero então que olhes para o céu,

porque essa luz azul apaga os meus

anseios singulares de um porvir

em que não andaremos mais ao léu

e só meus olhos se fixarão nos teus.

CONTEMPLAÇÃO XIV

Que tudo se contempla, na esquivança,

as imagens que fogem, os olhares,

inseridos em cortinas, lupanares,

gravados pelos templos da esperança...

Esses olhares distantes da bonança,

o que as paredes roubaram aos cantares,

o que os assoalhos furtaram dos andares

e tanto mais, que até narrar me cansa...

Olhares que se vão e não retornam,

os dedos ressecados, sem anéis:

tu mesma, um dia, ficarás ausente...

Só guardarei em mim visões que amornam:

lembranças de meus olhos, tão fiéis,

em que tua imagem guardarei presente.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/04/2011
Código do texto: T2923665
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