TEU VENENO (Meimendro) I-XII

MEIMENDRO I

Eu bem queria que nada mais sentisse,

porém a vejo agora desejável,

como antes não sentia, inabalável

o poder com que seu rosto me bendisse.

Eu bem queria que nunca me traísse

nem lampejo do olhar, que irresponsável

demonstrasse sentir-me mais que afável,

sem que no fundo nunca me iludisse...

Mas eu me iludo ainda. E sem motivo,

nesta paixão solerte e sem remédio,

em que tudo ganhei, ganhando nada.

Eis que percebo, de novo, redivivo,

o mesmo gasto amor... O mesmo tédio

de anos vazios de espera amargurada.

MEIMENDRO II

Não me parece sejam grande coisa

estes versos de hoje. Sem alento,

quiçá eu veja quão sanguissedento

se encontra o coração que não repousa.

O meu desejo foi escrito numa lousa,

pensando em ser levado pelo vento,

mas a frase rodopia, em vil momento,

quando em minha pele o olhar da brisa pousa.

Não foi lavado nem por paz nem vida,

esse desejo feroz e renitente,

tal como um fungo em reinfestação.

Por mais que noutro bem ache guarida,

vejo que tudo é falso e indiferente,

salvo essa antiga micose da paixão.

MEIMENDRO III

Todas as sombras dividirei contigo:

que seja uma só sombra, monstruosa,

sombra de vento, de estrofanto e rosa,

mas sombra dupla no caminho antigo.

Que se espreguice a sombra na calçada

e prossiga, frente a frente de meus passos,

reproduzindo a pureza dos abraços

de tantas sombras entrevistas no passado.

Pois nossas sombras já se fundem numa,

nos momentos em que os corpos se fundiram,

nesses seus beijos de sombras intocadas,

mas que se sobrepõem, pelas estradas

e se revolvem, num esgar de espuma,

a cada vez que os corpos lhes fugiram...

MEIMENDRO IV

O verdadeiro amor romântico não quer

amar senão de longe, na esperança

de conservar perfeito o ideal que alcança

nas velas da ilusão em seu mistér.

Intransponível é ao homem e à mulher,

porém transpor não é o que nos descansa:

o amor romântico não quer carnal bonança,

no consumar de uma cópula qualquer.

Ele prospera mais no afastamento

que na proximidade; então se ilude

que ideal de amor no amar seja perfeito.

Qualquer ato de amor, mesmo um portento,

eu custo a revelar, posto que é rude,

me traz fugaz suspeita de imperfeito...

MEIMENDRO V

Por mais que queira, não buscarei jamais:

já busquei antes e não tive a sorte;

por mais que a queira, retomar a corte

não tentarei de novo, nunca mais.

Já desisti de compor versos banais,

com tudo que me resta de amor forte;

hoje habitam, no meu peito sem consorte,

só mortalhas destes sonhos fantasmais.

São lembranças mal havidas, mal furtadas,

que a outros pertenceram, quão vulgar

se tornou tal amor... que era aquarela...

Eram amores apenas emprestados

pelo soprar do vento, em seu vagar,

que me assaltou pelas frestas da janela...

MEIMENDRO VI

É a própria vida que envenena a alma:

seu antídoto se encontra em cada sonho;

se o pesadelo aniquila mais medonho,

é o sonho bom que nos devolve a calma.

Mas eu rejeito o torpor que assim embalma:

se enveneno a mim mesmo, é quando ponho

no travesseiro a cabeça, em tal bisonho

arquejar por essa fuga que me empalma...

Prefiro muito mais o devaneio,

o automatismo do sonho hipnagógico,

a voz melíflua e ardilosa do inconsciente.

Nas linhas de minha mão tal fado eu leio,

que escorre de meus dedos, histológico,

como a peçonha se espraia em sangue quente.

MEIMENDRO VII

Nos lábios da mulher beijo cicuta,

que a rebeldia lenta me amortece...

ao invés de subir, a inércia desce,

com tais carícias que o coração escuta.

Toda mulher possui a força bruta

do bastidor em que bordado tece...

de nada serve debater-se em prece,

enleia o homem em sua gentil conduta.

Na tessitura lenta do tear,

no visgo constritor de seu veneno,

na prisão dura das horas do querer,

de que não fujo, já que podem dar

alguns momentos de prazer pequeno

que, ainda assim, lhe devo agradecer...

MEIMENDRO VIII

A cada pássaro foi dada uma garganta:

deve chilrear com a sua própria voz;

quando em coral, é coisa muito atroz,

a originalidade sempre um coro espanta;

e, contudo, como é rara a ave que canta

sua própria serenata em tom feroz;

a maioria só segue ao bando empós,

julgando que é o vulgar que mais encanta.

Por isso, minha pequena ave canora,

meu rouxinol, que te inicias na vida,

apenas desenvolve o teu cantar!...

Caso contrário, te levam a alma embora:

carinho te darão, em igual medida,

mas teu gorjeio... ninguém há de escutar.

MEIMENDRO IX

Ao longo de minha vida, se esforçaram

para curvar-me a cabeça até o solo:

a rebeldia foi esmagada a rolo

e a iniciativa toda me podaram.

Em vão busquei nas que se aproximaram,

por mais se aconchegaram no meu colo,

por menos que em ternura houvesse dolo,

a recuperação do que tiraram...

Só aos poucos consegui reconstruir

a carne por tijolos, por cimento,

na mescla de meu sangue o que perdera.

E mesmo hoje, ainda tento me iludir,

nessa catarse de agudo sentimento,

que me tornei naquilo em que devera.

MEIMENDRO X

Que para cada antídoto, há um veneno:

desse modo, no viver não limitamos

os dias vazios, ou meses, vários anos,

nessa modorra que, a pensar, condeno.

Talvez por isso, sem querer, ordeno

a meus olhos que cometam seus enganos;

meus pés me levam e, assim, atravessamos

os vastos erros da ópera que enceno.

De nada serve a vida sem percalços;

é bom poder tomar contravenenenos,

no contrabalançar das más ações.

Caso contrário, seremos vidros falsos,

envoltos nas mortalhas dos acenos

da vida branda... em mortos corações.

MEIMENDRO XI

Em cada resto de cartão há um poema

ou num pedaço de papel rasgado;

aliso os fragmentos com cuidado,

menos com os dedos que com bico de pena.

Sou como um escultor, ausculto a gema

gritando por sair e, lado a lado,

disponho essas palavras, transformado

em bico de cinzel o antigo lema.

Ninguém escuta os gritos. Sou só eu

que os posso revelar, libertador,

ao mesmo tempo que seu carcereiro.

Porque nada destes versos é só meu,

só trocam de gaiola, triste o humor

nesses rascunhos que enjaulei primeiro.

MEIMENDRO XII

Pois vendi meu coração. Vendi fiado

e só sei que até agora não pagaram...

Tantos carinhos que as unhas me deixaram

não retornaram iguais para meu lado.

O amor que lhes votei foi demarcado

por truques e armadilhas que saltaram

pelos caminhos que meus pés trilharam:

numa arapuca, afinal, foi encerrado...

E o veneno que tomei, tão descuidado,

encheu-me a mente e o corpo por inteiro,

enregelando o sonho em seu calor.

No descaso da ilusão aferventado,

soube seu nome ao gole derradeiro:

que o veneno que tomei chama-se amor.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 23/04/2011
Código do texto: T2925454
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