JARDIM DO ESPANTO XVI (O Hedíquio)

JARDIM DO ESPANTO XVI - O HEDÍQUIO

Apenas num relance eu entrevi

seu rosto simples, de meiga harmonia.

Foi uma sombra fugaz... Eu pressentia

ser apenas mais um sonho que sofri.

Esses sonhos compactos, empolados,

em que retorno a secular mansão

e lá a vejo: meus olhos, sem razão,

a reconhecem, entre arbustos perfumados...

E quantos rostos vejo e assim esqueço;

mas que relembro de novo ao ver, então,

de cada vez que ao próprio sonho eu peço

me reconduza outra vez ao meu delíquio,

com que a vejo no jardim... mais um botão,

na mágica deiscência de um hedíquio...

EURIPO

Eu preferia não ter, quando se enseja,

numa atitude podre, que me enoja,

essa pontada infeliz, feita de inveja,

que, por momentos, dentro em mim se aloja,

ao ver passar casais de namorados,

de braços dados, como ensurdecidos

ao que se passa em volta, ensimesmados

um no outro e de amor desvanecidos.

Porque eu queria, por um momento, apenas,

que esse amor fosse meu, só num instante;

logo se afasta a pérfida e inquietante

cobiça tola e feia, que a essa gente

eu não quero tirar seu dom transiente,

queria apenas um perfume de açucenas...

"euripo" é um braço de mar de travessia perigosa, com escolhos, por extensão, abismo, divisão, fenda, vala, o fosso de um castelo, a cava que separava as feras da arena em um circo romano, que só podiam transpor quando colocavam uma ponte provisória e depois erguiam as grades da porta, por extensão ainda, obstáculo, dificuldade. quero expressar o abismo que existe entre meu eu moral e as sensaborias do eu emocional.

ARAVEÇA

Amortecido estou, estou dormente,

meus olhos secos, surdos a teu gosto,

orelhas mortas, pálidas de agosto,

minha boca cega, sem tato e indolente,

meu nariz mudo, raciocínio exangue,

minha língua mouca, nada mais escuta,

meus dedos incolores, da permuta

com mãos ausentes: bravo, este meu sangue,

meu queixo imóvel, nem partilha dentes,

do umbigo aberto sobem intestinos

e meus pulmões se afogam em saliva...

Ela se foi, seus passos, imprudentes,

a conduziram a palmilhar destinos

que não percorrerei na mágoa esquiva.

[a araveça é uma pequena charrua de uma única lâmina, mas muito cortante].

INSUMOS

Muitas vezes ouvi como é inconstante

o capricho de Cupido, que asseteia

ao acaso; e as mentes incendeia

com novas endorfinas, delirante,

os corações incautos dos humanos,

que se olham, se cheiram e se escutam

e, de repente, tudo o mais enlutam,

como se novos desejos, soberanos,

tivessem surgido por primeira vez,

nesse crucial tombar numa emboscada

que os leva a caminhar cegos e à esmo.

E não compreendem, nessa insensatez,

que vivem velha história reformada:

que no fundo tudo é igual e sempre o mesmo.

AS JOVENS DE ROMA XXII

VITRÚVIA

Eu não busquei, sequer mais esperava

que pudesse outra vez me enamorar,

sabendo o que já sei, me ensimesmar;

sabendo o que já fiz, não mais buscava.

Também não esperei, posto que amava

o amor do Amor: a saga passional...

paixão pela Paixão, pela sensual

revisão de uma chaga que sonhava...

Sonhava em não ser mais apenas chaga,

e nem ao menos em versos pretendia

esgotar-se algidamente no trasnoite

de um trabalho sem fim, de luz aziaga,

que, de repente, em brotação crescia,

apenas por um rosto perdido nessa noite.

GATOMICIDADE

Foi um caso de amor puro e verdadeiro

O desse gato arredio que ronda o pátio,

Atrás da gata persa, o dia inteiro,

Na química atração de um ânio para um cátio.

Fiel e permanente... mas durante o cio

Em que ela se encontra. Depois, provavelmente,

Irá em busca doutra; e o vento frio

Enfrentará de novo, constante e permanente.

Nessa dança eletrônica dos átomos,

Partículas o andar torna e sacode,

Na mesma sanha frágil e mesquinha...

Girando em desespero estão os 'gátomos',

Porque esse gato é sincero e mais não pode:

Quer tão somente emprenhar nossa gatinha.

JARDIM DO ESPANTO XVII - A HELICÔNIA

Amor é o fio cortante de um alfanje,

A cimitarra precisa da ansiedade,

Punhal agudo, bisturi que tange

Veia após veia, no esguicho da saudade:

Um corte vago e, mesmo assim, preciso,

Um talho exato, direto entre as costelas,

Evitada a omoplata, sem que o riso

Impeça de invadir e enfiar-se nelas...

Que todas essas faces perfurantes,

Esses sorrisos, setas lancinantes,

São risco feito a giz, no qual a insônia

Transparece na loucura do momento,

Em que finjo paixão e me apresento,

Cortante o gume, tal como o da helicônia.

JARDIM DO ESPANTO XVIII

O ROSMANINHO

Embora me pareça ter sido quase inútil

o balanço de minha vida, sem nada esplendoroso,

sem fama ou glória, sem castelo fútil,

sem harém em que reinasse majestoso,

em retrospecto, vejo entanto, que servi,

executando minhas tarefas, habilmente,

talvez a muito mais que percebi,

no incentivo e no apoio a tanta gente...

Porque à disputa nunca tive inclinação:

não sou de competir... quero me escolham,

que me convidem e busquem, de mansinho,

que todos estes versos eu fiz sem ilusão:

buscam o sol somente, enquanto se desfolham,

em brotação suave, tal como o rosmaninho.

SOLDADOR

Meu pranto cresce em mim, erva daninha,

em múltiplas camadas; mas, enquanto,

não chora a chuva, a lástima sozinha

vem, diligente, a capinar meu pranto.

Meu choro escorre em mim, sangue dos deuses,

em férvida amplidão; e não me espanto

que venha a própria lágrima aos adeuses,

num tempo mágico, por coagular meu pranto.

Nesse momento, eu me percebo alado

e, dentre as nuvens, vou ferver meu pranto,

em gotas de alvorada, em santos óleos,

para que âmbar se torne o olhar truncado

e me faculte, assim, cauterizar meu pranto

nos eletrodos dos cílios de teus olhos...

JARDIM DO ESPANTO XIX

O AMOR-AGARRADINHO [ANTÍGONO]

Um certo amor existe que dura muitos anos,

Que resiste aos percalços da vida e aos desenganos,

Que suporta a pressão do enfado; e o dia a dia

Aceita sem surpresa; e até a monotonia

Recebe em desafio, pois sob o mesmo teto,

Permanece constante um refluir de afeto,

Que apesar das brigas, da pena e discussão,

Conserva firme à vista qual é a aceitação

Que guarda os dois unidos contra o mundo,

Nos olhos um do outro um refletir profundo

Perdura sempre, em duplo afogamento.

E assim se suspende, no amor, o julgamento.

Amor é duradouro, se amor não é mesquinho,

Fiel e persistente esse Amor-agarradinho...

RECORDAÇÃO XXIX

Fazia com ela amor todas as tardes

e à noite sempre, ansioso, repetia:

era tão raro pular, que surpreendia

a um e à outra; e provocava alardes:

"Queres fazer feriado?" --- me dizia,

em tom de brincadeira, mas cuidava,

olhar de águia, por onde que eu andava,

enquanto nosso amor satisfazia,

em êxtases freqüentes, de amor pleno,

azuis como um fulgor de acetileno,

qual maçarico que a ela me soldasse.

E ela gemia meu nome, em seu orgasmo,

e me apertava no estertor do espasmo,

que muito mais que eu próprio experimentava.

AS JOVENS DE ROMA XXIII

ASCÂNIA

FOI UM MOMENTO MÁGICO, DE ASSOMBRO

QUANDO TEU ROSTO VI, NA FORTE LUZ

QUE A LÂMPADA DO TETO ME PRODUZ,

E MANIFESTA À PERFEIÇÃO O ESCOMBRO

QUE SE TORNOU MEU ROSTO, MAS O TEU

PERCEBI DE REPENTE, SURPREENDIDO,

COMO ERA BEM FORMADO, QUE SENTIDO

MOSTRAVA ESSE CONTORNO, QUE ME DEU

A CLARA COMPREENSÃO DE UMA BELEZA

QUE RELUZIU NO OLHAR DE COR CASTANHA

AMARELADA, EM UM CÍRCULO PERFEITO.

AS GRANDES ÍRIS DE TANTA SINGELEZA,

PURA E COMPLETA; E SEDUÇÃO TAMANHA,

MAS QUE NEM DE CONTEMPLAR TENHO DIREITO...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 29/04/2011
Código do texto: T2938103
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