AMOR DE CÂMARA 1-32
A M O R D E C Â M A R A
Ciclo de Sonetos alusivo a Compositores
William Lagos [2006]
AMOR DE CÂMARA I
Sou auditivo: a música me atrai
imensamente; e me prende a atenção,
a ponto tal, que mesmo na emoção
de um beijo de amor é o som que me distrai
E sigo a melodia em todos seus compassos,
a orquestração, figuras, a harmonia...
É meu primeiro amor... A nostalgia
faz-me até esquecer de quem nos braços
eu tenha no momento. E o sexo
é diluído no gozo da elegia,
torna-se palha arrastada pela melgar...
É no silêncio que o amor encontra nexo...
Quem mais que tu assim me induziria a
fazer amor ao som de Lorde Elgar...?
melgar or melga is a farm tool to drag straw. a hard rhyme to find for the composer's foreign name, but fits meaning and works rhythm. and the title, of course, is an allusion to 'chamber music'.
AMOR DE CÂMARA II
Amor, eu te busquei intensamente.
Foste, acima de tudo, um dom presente,
em cada verso meu, em cada ponto
que breve conduziu-me ao desaponto.
Por nunca te possuir, embora a alma,
internamente, em tresloucada calma,
pusesse ardentemente a teu serviço:
meu peito renascido, a mente e o viço,.
totalmente inclinados para ti.
Mas foi obra de um dia, tão somente;
sorriste uma só vez, nesse inclemente
ardor, que não sentiste qual senti.
E agora te esqueci, por mais que chames...
Que estou fazendo amor ao som de Brahms.
AMOR DE CÂMARA III
Cantando te encontrei e fiz meus versos;
também fizeste os teus, inda que poucos.
Os meus foram suaves, foram roucos,
foram altivos, humildes, nos diversos
concatenares de amor inesperado;
paralelismos de amor subcutâneo;
transmigrações de ardor tão subitâneo,
quanto é funesto o amor avassalado.
E assim me vejo em música envolvido.
Quando te abraço é como uma canção,
que, em melodia estranha, poucos ouvem.
Meu corpo inteiro faz-se diluído...
E até parece que dissolve o coração
fazer amor ao som de Van Beethoven...
AMOR DE CÂMARA IV
A melodia foi meu amor primeiro.
Depois veio a poesia, de iludido.
Ou, realmente, meu coração ferido
poderia transportar-se, por inteiro,
ao propalar da arte requerido.
Mas encontrei teu abraço derradeiro,
fui teu escravo e a música, ligeiro,
abandonei, mas sempre condoído.
Que nesse orgasmo eu gero a mim de novo,
imerso assim nas garras da ilusão,
pois nesse amplexo, eu sinto-me infiel.
E é por isso que procuro, num renovo,
para não desfatiar meu coração,
fazer amor aos acordes de Ravel...
AMOR DE CÂMARA V
O que eu desejo, aquilo que mais busco
é alguém que não somente me compreenda,
mas que caminhe pela mesma senda
e que meu braço ampare ao lusco-fusco.
Alguém que pense em mim com mais carinho
do que até hoje tive. Amor estranho
que me faça sentir, como de antanho,
ser meu cajado e a luz no meu caminho...
Porque aquilo que busco, eu não perdi,
e até o que não buscava, consegui,
embora seja muito mais o quanto quero...
Não é um amor comum, que assim espero.
Anseio um grande ardor, que então me ensine
A amor fazer... ao som de Bononcini...
AMOR DE CÃMARA VI
Os homens se combatem, fazem guerras,
ao passo que as mulheres, por vaidade,
competem mutuamente, sem piedade,
umas e outros por épocas e terras...
Mas quando o homem combate com a mulher,
uma derrota ao outro; e o outro vence,
nessa junção dos corpos, que convence
ser das batalhas a que mais se quer...
Quando teu corpo noutro se emaranha:
uma vitória em que jamais se ganha,
uma derrota em que jamais se perde...
Que a adversária então nos acompanha,
no mesmo galardão que enfim se herde:
fazer amor com a música de Verdi.
AMOR DE CÂMARA VII
Bate forte essa música e entorpece
e durmo e só desperto ao dia seguinte.
Queria que meu sonho então se desse:
sensual o sono que o sonho teu me pinte.
Queria que Morfeu trouxesse, alado,
o sonho bom que tive: e foi contigo;
e que igual sonho tivesses tu comigo:
quisesses despertar e ver-me ao lado.
Que fosse tudo novo nesse sonho.
Que fosses meu ideal e eu fosse o teu,
por entre as ondas que no sonho espumam.
Que fosse um sonho límpido e risonho.
Que nos fundíssemos em cristais de breu,
para fazer amor ao som de Schumann...
AMOR DE CÂMARA VIII
Fecha a janela durante a tempestade,
palpitante dos dias que anjos voam,
falando mudos das noites que se escoam,
enquanto acorda, presa da saudade
de seu amor antigo e já afastado:
amor que foi de lâmia e feiticeira,
amor que foi de fada alvissareira,
amor de um coração semi-cerrado...
Mas para mim que abrir essa janela,
de par em par, sem hesitar, quisesse
e eu lhe entregasse o meu desejo atroz,
de que me pertencesse, toda ela,
e que inteira e pronta já estivesse
a amor fazer, ao som de Berlioz...
AMOR DE CÂMARA IX
O vento sopra agudo e a voz do sino
se espalha, em tom plangente, na alvorada.
E eu mal dormi, não me conduz a nada
esse tinir dolente em meu destino...
O que eu escuto são apenas sons da noite:
um trem ao longe, um galo, uma zoada
de pássaros despertos... A revoada
das luzes da cidade, em claro açoite...
Mas no instante em que tomo entre meus braços
um corpo cálido de mulher amada
e derramo meus olhos em seus traços,
tudo demuda em dulcíssima alvorada:
o vento canta e brando o sino tine,
fazendo amor aos acordes de Puccini.
AMOR DE CÂMARA X
Amor pequeno e raro, amor distante,
Amor de ária singela, orquestração
eventual de cavatina, sem brilhante,
a reluzir tão só no coração...
Amor de pobre, amor bem pequenino,
que apenas de relance satisfaz...
E após deixa um ressaibo, um travo fino,
dramático em sua dor, sem trazer paz...
Amor assim, baseado em melodia,
na pureza da voz, rouca elegia,
que o peito alegra, em tal desesperança...
Amor de longe, enfim, que mal se alcança,
Amor de carnaval, amor confete,
fazendo amor ao som de Donizetti...
AMOR DE CÂMARA XI
Eu nem me esforço por teu amor concreto.
Abstrata, és mais real. Posso forjar-te
segundo a síntese de meu ideal secreto.
Enquanto a substância, ao contemplar-te,
Se escapa a tal prazer sob as pupilas...
E, no entretanto, quando enfim te abraço
E nesse teu ardor, por mim cintilas,
Teu dom carnal preenche todo o espaço...
Como endorfinas então o meu marasmo!
Tal como a música, teu corpo me consola,
Durante os dias bons e os dias maus...
Pois me renovo em ti, em tal orgasmo:
Sempre é um antídoto, nesta vida tola,
Fazer amor com a música de Strauss...
AMOR DE CÂMARA XII [thanks, Nevin!...]
Teus beijos, para mim, são como pérolas
ensandecidas no fado dos desejos...
São colares de preces, esse beijos,
intercalados de ausência, como férulas...
Que me azorragam e me deixam pálido,
inconseqüente, embora em vezo permanente.
Teus beijos são sonidos, são fremente
cintilação de carne, nesse inválido
fulgor. Que em tais momentos, feitos loucos,
todo o concreto se transmuta em ilusões,
por mais me agrade teus gemidos escutar...
Misturados aos meus. Suspiros roucos,
que para mim ressoam quais canções,
fazendo amor com Schubert no ar...
AMOR DE CÃMARA XIII
Eu sinto a solidão como a palpável
parede de sorrisos de indulgência
com que encaro o mundo, essa paciência
de longanimidade imponderável.
E vejo o mundo assim, tal qual miragem
de demiurgo talvez... Em que me insiro
como observador... Em que me inspiro
ao descrever dos outros a passagem.
Nesse favor com que a mim mesmo acorro
e beijo a própria imagem, que me beija,
nos permanentes amores transitórios...
Que então me levam a buscar certo socorro
nos braços de quem sei que me deseja,
amor fazendo aos acordes de Praetorius...
AMOR DE CÂMARA XIV
Sempre que estou contigo, dentro em mim
ressoa o acorde de estranha melodia.
Por vezes, nem recorda uma harmonia...
Por vezes sei, quanto eu escuto assim...
É como se teu rosto, se teus olhos
criassem pentagramas em meu ser.
Ao te beijar, escuto a reviver
sabor de onda a esbater escolhos...
E retorno tal música a escutar
e nela encontro singular abrigo,
porque sinto de ti tremenda fome...
Ela me leva ao passado e a pensar
só no prazer de, quando estou contigo,
fazer amor ao som desse Albinoni...
AMOR DE CÂMARA XV
Já na minha idade, o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora.
Desejos permanecem, muito embora
a ânsia em consumá-los, seja aflita
espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto.
Quero algo mais suntuoso e assim discreto:
que seja humilde e vasto de orgulhoso...
Meu anseio transitório e duradouro...
Amor de barro envolto em fólio de ouro...
Fama obscura e estética assimétrica...
Austera e sibarítica, em serpentina ética...
Pois enquanto faço amor, meu coração se move,
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov...
AMOR DE CÂMARA XVI
O sangue de minhas veias negro deve
ter-se tornado, senão estes poemas
sairiam em vermelho e os dilemas
seriam como aqueles que se escreve
após rasgar as veias, pouco antes
que dessangrasse mente e coração,
que se esvaziasse o fígado; e o pulmão
já não mais se insuflasse, como dantes.
E, todavia, é meiga hemorragia,
que não se estanca em mim, nem coagula...
Embora os versos diluam a embolia,
são derramados para alheia gula...
E neles minha ternura se define,
fazendo amor aos acordes de Bellini.
AMOR DE CÂMARA XVII
A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,
por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...
E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...
E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...
AMOR DE CÂMARA XVIII
Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...
E eu! Que sempre escravo fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...
E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...
No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...
AMOR DE CÂMARA XIX
Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter e ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta
do próprio ideal de si por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.
São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...
São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor... enquanto Wagner se escuta...
AMOR DE CÂMARA XX
Ela girava e esbatia o sapateado,
nesse flamenco, em sabor de andaluzia,
estremecendo o tampo do tablado
e o eco das guitarras se envolvia...
Ele girava em volutas o capeado,
morto o touro em sangrenta aleivosia,
guampas e espada em combate simulado
que, finalmente, em sangue se escorria...
Num mar dolente de maromba e ventarolas,
que olés furiosos aos ares emancipam,
paixão feroz que assola e jamais falha...
Na dança o brilho de muitas castanholas,
nessa tourada em que chifres não destripam,
fazendo amor com a música de Falla.
AMOR DE CÂMARA XXI
Renova o mundo e sempre fica o mesmo:
as gerações se iludem, ao pensarem
poder costumes novos adotarem,
por mais que o façam aleatório e a esmo...
Pois tudo que hoje é feito, já se faz,
por séculos sem conta e nada novo
existe sob o sol... Todo renovo
imita apenas, em sua vez fugaz,
outro modelo oriundo do passado.
Trocam-se as roupas, é nova a orquestração,
mas se repetem as músicas e a paixão.
E é assim que nos deitamos, lado a lado,
em catadupas que crescem e se esvaem,
fazendo amor ao som de Bernstein...
AMOR DE CÂMARA XV [2ª Versão]
Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita
espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso
este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,
austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.
AMOR DE CÂMARA XXII
Que vou dizer, que já não tenha dito?
Que esse amor, consumido de distância,
se fez indiferente... E sua importância
foi desbotando ao som de um débil grito?
Transformou-se num eco, como aflito
chiar de mim... estertorou a ganância
de um desvalido bafo de fragrância
antes de unir-se ao derradeiro mito...
Retorno para mim e me examino:
os sentimentos estão lá, despertos...
Ali perduram tantos sonhos bobos...
Escuto ainda o seu clangor de sino,
enquanto me contemplam, boquiabertos,
fazendo amor ao som de Villa-Lobos...
AMOR DE CÂMARA XXIII
É melancólica a música que ouço
de um lilás pálido e verde esmaecido,
um filamento inteiro, amortecido
em véu acinzentado e azul insosso.
É melancólica esta música que escuto
e mesmo quando tenta ser alegre
é a ilusão de um sonho ardendo em febre,
um pesadelo a expelir-se em gesto bruto.
E, mesmo assim, por dentro me renovo,
me esforço por sorrir; e até energia
produzo sob o efeito desta espera...
Enquanto penso em ti, eu me comovo
e gostaria de estar, nessa elegia,
fazendo amor ao som de Ginastera.
AMOR DE CÂMARA XXIV
Já esta é mais feliz, são seus acordes
mais propensos a encher-me de energia:
há alguma coisa nela, que me envia
à vastidão e faz que em mim transbordes,
incauto coração, à comoção propenso,
empós fios de ouro de outra negra teia,
qual mariposa que a si mesma enleia,
ao se lançar contra o invisível lenço
de perfeição estranha e inquebrantável;
e também eu, na busca reluzente,
mais outra vez nessa cilada eu caio,
porque quero alcançar o imponderável
que vejo de meu mundo sempre ausente,
fazendo amor aos acordes de Moncayo.
AMOR DE CÂMARA XXV [SCHUBERT II]
Muito poucos dominaram melodia
dessa maneira assim, incandescente,
com tal facilidade complacente
de esparzir, sem esforço, a fantasia.
Tão natural foi nele essa elegia
quanto exige de um outro esforço ingente,
tal se enfrentasse o tempo descontente
e, em vez de notas, fosse areia que escorria...
Também já partilhei do mesmo dom
de lançar harmonia no caminho,
mas um soneto possui mais singeleza.
E, deste modo, me dedico é a este som,
fazendo amor em gestos de carinho,
enquanto escuto de Schubert a beleza.
AMOR DE CÂMARA XXVI
Não me quiseste iludir, foste sincera,
não te agitava o mesmo sentimento
que a mim me avassalava o pensamento
no deslocado final da vida austera...
porém me amaste, ardente, quando dera
o ensejo, em meus braços de um momento...
ah, durasse para sempre!... em truculento
tomar e receber, amor de fera...
que, para mim, tornou-se equivalente
ao verdadeiro amor, foi inconteste:
que ao saber que outro amavas, deu-me um baque
bem fundo ao coração, pois foste ardente
nesse teu último abraço que me deste,
amor fazendo ao som de Dvorák... *
[Que se pronuncia Dsvôrjaque. Ah, esses tchecos!...]
AMOR DE CÂMARA XXVII
Não me buscaste mais, desde esse dia
em que em teus olhos entrou um novo amor,
que te escorreu ao longo dos cabelos
e te arfou as narinas de ambrosia...
Não me lembraste mais, desde essa noite
em que escorreste um gosto de calor
a quem adquiriu os teus desvelos
e te buscou ingente em seu afoite...
E nunca mais satisfizeste as fomes
que por ti sinto, sempre que nos vemos,
na ânsia nova do abraço em que morremos...
Por mais que essa esperança de mim tomes,
ainda recordo a vez em que estivemos
fazendo amor ao som de Carlos Gomes...
AMOR DE CÂMARA XXVIII
Nunca por mim tiveste a mesma alvura
dos sentimentos que te dediquei;
eram cinzas os teus; e me esforcei
para torná-los prata, em bênção pura;
mas despertou em ti estranha agrura
que jamais compreendi: talvez sonhei
apenas que existisse; não voltei
a examinar esse gris da criatura
que então viveu em mim, nas ilusões
que criei só, bem sabendo que criava:
foi arremedo de ti quanto eu amava,
qual se nunca reais fossem ocasiões,
embora a vida inteira em ti se perde,
fazendo amor com as óperas de Verdi.
AMOR DE CÂMARA XXIX
Se encontra uma doçura insuspeitada
no olhar sorrateiro da mulher,
quando avalia, para ver se quer
aceitar que a desejem por amada;
mas a doçura não se lança fora,
em direção ao homem, mas a si:
é um olhar para dentro, bem ali,
onde peneira encarnações de outrora,
a recordar se já foi antigo amante,
nos séculos de antanho, quando a dor
os separou, na memória que se perde
nas espirais de helicônia delirante;
e a decidir se algum dia fez amor
com melodias de Claudio Monteverdi...
AMOR DE CÂMARA XXIX-A
Quando a tomo em meus braços, cada dia
e sinto o seu perfume e o som da pele
e a voz do coração quanto me apele,
sou envolvido na cor dessa elegia...
Quando a mim nos braços toma, nessa fria
cordialidade dos tempos de calor,
a tal ponto me refresca, em seu amor,
que a pele acalma e a mente me esvazia.
A cada vez, me sinto mais surpreso,
que retome o anseio de seu beijo,
em tal orgasmo, refletido em intermezzo.
Que assim retome a força do desejo,
cálido e leve, sol em seus afélios,
amor fazendo aos acordes de Sibelius.
AMOR DE CÂMARA XXIX-B
O ano já avançou, veloz e rápido
e se aproxima o triste carnaval:
não que me faça bem ou faça mal,
me é tão só indiferente seu momento,
em que respiro sexo no alento
dos antigos rituais do amor sensual:
é inconseqüente o seu desejo vápido,
em sua ânsia por culpa e por portento.
Da religião copiou a castidade,
que o sexo do ar mais lembra morte
do que alegria; e busco, desta sorte,
um refúgio musical e sem maldade,
que assim me fortaleça e não me mate
fazer amor ao som de Zarazate.
AMOR DE CÂMARA XXX
Quando ouço as aves que uma orquestra imita
e me invade o seu prazer intelectual,
minha alma a um novo rebrilhar concita
de uma resposta forte e emocional;
nessa abordagem multi-sensorial
que tenho pela vida, assim crocita
a meu redor seu dom imaterial,
sem que tenha bem certeza se essa grita
seja real ou fruto imaginário
das redes quânticas de esplendor neural
que constituem meu ego multifário,
nessa expressão quase anti-natural
da vibração do mundo, que me obrigue
a amor fazer aos acordes de Respighi.
AMOR DE CÂMARA XXXI
Não são pérolas meus versos neste agora:
eles voltam a brotar insatisfeitos,
pelos anos de espera contrafeitos,
pela delícia vã de ser outrora,
antes que possam ser um doravante:
não mais se formam de um amor presente;
que tal soar sinfônico apascente,
porém não mais se mostre exilarante;
são versos mais pesados, ponderados,
não por amor ou por pendor sexual,
mas por sérios pensamentos impelidos,
nessa audição de tons amargurados,
que me reveste de um olor plurisensual,
fazendo amor com Grofé aos meus ouvidos.
AMOR DE CÂMARA XXXII
VELANDO o sono dos mortos,
VINTE olhos de esmeralda,
VERTEM sangue, que se esbalda
em ribeiros VERDES tortos...
VAGAS órbitas de abortos,
VIVEM crânios sobre a falda,
VERMES vagam nessa calda
dos VAZIOS, verdes portos...
nas VESTES mofo de antanho,
VERDES corpos oxidados,
nesse VASTO e negro toque...
faz-se amor em VISGO e banho
dos acordes VERMELHADOS:
VERDES gritos de Bartók...