CONVITE / CONDÃO / ORGANISMO / METAMORFOSE

CONVITE I (5 JAN 79)

Claro está, que ao traçar de meus poemas

(Mesmo que nos poemas não interfira,

Porque já chegam prontos e eu apenas

Recubra do papel a longa tira

De versos que palpitam, singulares,

Na métrica sutil tão uniformes,

Na rima puros e límpidos cantares,

Mas nas ideias sempre desconformes...)

Que gostaria de ter prazer contigo:

Eu de escrever e tu -- de me escutares,

Nesse milagre puro e tão antigo,

Claro aos olhos de todos, mas humano,

Se tu somente meios me entregares

De abrir teu coração, em gesto arcano...

CONVITE II (21 MAI 2010)

Longe se encontra a época em que o convite

foi lançado, mansamente, pelos ares:

te dispuseste assim a me escutares,

no mesmo gesto que a tal prazer incite.

Já não existe o que a lembrança evite.

As palavras se gravaram, lapidares,

nessas tábuas de carne tumulares

da sepultura que em meu peito habite.

Foi um milagre comum, mas sobre-humano,

no sobre-humano que tanto se repete

e se entremeia assim em todos nós,

bem conhecido e igualmente arcano,

esse assombro que na vida se intromete,

e então dilui e mal se lembra após...

CONVITE III

Tantos convites há sem ser aceitos,

que se vão pelo ar, em revoada,

tanto pedido que não conduz a nada,

tanta esperança em tais ideais desfeitos...

Nessa memória de lábios contrafeitos

tanta malícia se acha desenhada,

tanta carícia apenas esboçada,

tantos sorrisos transmutados em trejeitos...

Pois realmente é um milagre se complete

de um olhar para outro a conexão,

sem que seja pela vida desvirtuada.

Que tanta gente apenas se derrete

no fogo-fátuo estéril da paixão,

sem que essa jóia real seja encontrada.

CONDÃO I (3 JAN 79)

Com frequência, o que o povo mais despreza

Assume real beleza e singular,

Que, num momento, assalta o nosso olhar

E põe em dúvida o quanto antes se preza...

Pois eu vou te dizer: das mais bonitas

Coisas que vi -- também mais desprezadas,

Foi contemplar na grama, rejeitadas,

Fezes cobertas de moscas esquisitas...

Os corpos verdes, de ouro cintilantes,

De azul e prata em chispas de poesia,

A cintilar suas azas rebrilhantes,

Em uníssono zumbido de harmonia,

Como se fora um broche de diamantes,

Abandonado assim na pradaria...

CONDÃO II (21 MAI 2010)

Contudo, foi milagre de um momento:

nunca mais experimentei igual magia,

se fezes deparei. Somente as via

com o mesmo nojo e desprezo que acalento

quando as contemplo agora, ou quando o vento

traz-me às narinas o cheiro que associa

a mente a tais produtos, grosseria

para as pessoas de mais fino acabamento.

Não obstante, existiu um tal instante,

em que o descrito broche imaginário,

talvez caído do saco de um ladrão,

ocupou-me o coração, até o descante

do coro zumbidor e multifário

dessas moscas abençoando a refeição...

CONDÃO III

Recordo mesmo agora a erva virente,

entre um regato e qualquer mata ciliar:

estava a propriedade a inspecionar

e tive essa impressão, bem de repente...

Não demorou, contudo. Foi somente

o toque de condão do imaginar:

dois pontos que liguei no meu pensar

e que sumiu no minuto consequente...

E quanta vez, ao longo de minha vida,

(como estou certo te aconteceu também)

confundi um lampejar com folha d'ouro...

Quanta ilusão me apressei a dar guarida,

na ânsia inútil por mais outro bem

e que morreu no próprio nascedouro!...

ORGANISMO I (3 jan 79)

Se eu comparar poesia à minha bexiga

Te causarei um choque, caro ouvinte?

Esquece, pois, o choque, mas pressinte

Que símile mais certa eu não consiga.

Pois para mim é assim: uma pressão

Que se acumula desde o baixo ventre,

Que premendo o diafragma se adentre

Nos domínios sacrais do coração,

Que já, numa explosão, ruge de afeto

E sai a maquinar novo soneto

E para isso engaja olhar e mão.

E o verso se derrama, multifário,

Qual ouro líquido em vaso sanitário

E o corpo inteiro torna-se emoção!...

ORGANISMO II (22 mai 2010)

Ainda hoje me permanece orgânica

esta ânsia inusitada de poesia:

já a comparei ao sangue, à fome, à orgia

e continua a mesma intenção pânica,

que me sobe do corpo qual a hispânica

procura do El Dorado, em sua magia.

Talvez fosse o vigor que me impelia

a aceitar a redação por sufragânica,

mas o fato permanece. É corporal,

um membro que do corpo se levanta

e se derrama em tinta no papel.

Escrever versos se tornou tão natural

como esse ar que me pesa na garganta

ou a amargura de quem mastiga fel.

ORGANISMO III

Que se derrame assim, em fios de ouro,

esse magma candente que me alaga,

essa líquida mágoa que me afaga,

esse arrepio que me percorre o couro.

Que seja assim: labuto como um mouro

e mesmo se a saúde já se estraga,

meu coração por lucro não indaga,

mas se entrega totalmente ao morredouro.

Que seja assim: que o sonho me consuma,

que escorra entre meus dedos, antes mesmo

de admitir tal quimera ao coração.

Que escorra o verso nessa mansa espuma,

como minha própria urina corre a esmo

e que fecunde o solo à brotação.

METAMORFOSE I (4 JAN 79)

Que foi que me tocou? Os dedos leves,

A seguir-me dos malares o contorno,

Numa prece tão meiga e sem retorno,

Que apenas enviar aos deuses deves?

Que foi que me tocou? A insinuação,

Velada apenas ao véu nictilante

De ofídios olhos teus, tão cintilante

De que vinhas buscar-me o coração?

Que foi que me tocou? A sensação

De ter achado, com finalidade,

A fonte meiga da emoção mais pura?

Só sei o que senti: leve condão,

Em suave adejo de felicidade,

Tocou-me a face e a mágoa assim me cura.

METAMORFOSE II (23 MAI 2010)

É impossível conviver sem desnudar-se:

não é somente a quebra das arestas,

nesses momentos de brigas ou de festas,

que as reentrâncias levam a fechar-se.

Isso é somente um tipo de catarse,

cantada antanho em multidões de gestas,

nas peripécias com que a paciência testas

os pendores podados e a espalhar-se.

Mas a vida em comum metamorfose

provoca num e noutra sem reserva:

algo se dá e algo se recebe,

por mais que se reprima tal osmose,

nossas raízes se abraçam sob a erva

e cada um o sonho alheio bebe.

METAMORFOSE III

É impossível conter essa mudança,

que nos vem sutilmente, de emboscada,

quando se vê, a alma está trincada

por esse palpitar sem esquivança,

muito diverso das trocas da abastança,

quando o esmeril da vida atribulada

a mente pui e a alma faz rachada:

as lascas saem, porém não há mudança.

É no entrechoque vital que a gente muda,

sem sentir, sem pensar; e até querendo,

pelo prazer de buscar tal semelhança,

quando o caráter, aos poucos, se transmuda

e a pele contra a pele vai rangendo,

nessa memória comum que a mente alcança.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 20/05/2011
Código do texto: T2981592
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