FÁBULA / RARIDADE / VIÁTICO / COLEGA
FÁBULA I (23 AGO 79)
Não percebeste ainda, mulher que quero tanto,
A que ponto tua alma bordou-se no meu pranto,
A que ponto teu beijo entranhou-se no manto
Que me reveste a vida e divinal fascina?
Não percebeste ainda, mulher feita de aurora,
Que vivo a antegozar somente nossa hora,
Parelha à mais antiga, permeada em nosso outrora,
Do mesmo ideal de amor, viscoso de resina,
Que à seiva tua prendeu-me e fez-me tão diverso!
Que a música trocara por multifário verso
E em ti me entrelaçasse, alheio a meu perigo?
Teus sonhos feitos meus, meu coração converso,
Espuma assim de estrofes que a mente tem disperso
Que só de ti provém, tão só por meu castigo?
FÁBULA II (12 JUN 10)
Falando francamente, a verdadeira musa
encontro dentro em mim, nas dobras de minhalma:
é ela que me inspira e me concede a palma,
sem negaças de amor e sem qualquer recusa.
Não precisa essa ninfa mostrar qualquer escusa:
ela sorri constante, em máscara de calma
e quando me entristeço, a mente inteira embalma,
em ária delicada de antiga cornamusa...
Dizer que a inspiração provém de uma mulher
não passa, bem no fundo, de um tipo de traição
feita a essa deusa interna, a musa complacente,
que me perdoa e envolve, em seu gentil mister,
me acalentando sempre, em mansa exultação,
e sempre que a recebo, demonstra-se contente...
FÁBULA III
Porque essa é a verdadeira amante de minhalma:
jamais me deixa só, no gozo ou na amargura,
a minha testa afaga, em fraternal ternura,
sem nada me pedir a troco dessa calma...
As amantes da vida querem fatias d'alma
e nunca se contentam com a afeição mais pura:
requerem sujeição enquanto o amor perdura,
se mostram ressentidas assim que ardor se acalma.
A minha amante não... É fábula perfeita:
a mesma concubina frequente no meu sonho,
com mil fisionomias procura me agradar...
Faz parte de mim mesmo e assim não se deleita
em caprichosa troça no instante em que me exponho
e enquanto dá-me as asas, ensina-me a voar...
RARIDADE I (23 AGO 79)
NÃO TENHAS DÚVIDAS NUNCA
DA FORMA DO MEU DESVELO,
DO ESPLENDOR DESTE MEU ZELO,
DAS EMOÇÕES QUE TE JUNCA,
QUE NINGUÉM TE AMARÁ TANTO,
QUER VIVAS CEM ANOS MAIS,
NÃO TERÁS AMOR JAMAIS
PARELHO AO DESTE MEU CANTO.
POIS ENTÃO, TU NÃO PERCEBES,
ATÉ QUE PONTO ESTÃO CHEIAS
MINHAS LÁGRIMAS DE TI?
ATÉ QUE PONTO CONCEBES:
COM TEU OLHAR ME INCENDEIAS
DE AMOR QUAL NUNCA EU SENTI!
RARIDADE II (13 AGO 10)
ACHO QUE ATÉ MISTUREI
COM OS DEMAIS O RASCUNHO:
PASSOU A LIMPO MEU PUNHO
ESTES VERSOS, COM CERTEZA...
POIS DISSO DOU TESTEMUNHO:
EM ALGUM LUGAR DEIXEI
ESTE CANTO SEM BELEZA,
MARCADO PELO MEU CUNHO...
FOI POUCO MAIS QUE MODINHA,
NUMA FRASE BEM SINGELA,
FEITA SEM GRANDE CUIDADO...
PORÉM, FICOU BONITINHA,
SEM PRETENDER SER ESTRELA,
NADA MAIS QUE MEU RECADO.
RARIDADE III
ENTÃO SEGUE O COMENTÁRIO,
JÁ QUE ENCONTREI OS PAPÉIS
E RESOLVI PÔR ANÉIS
SOBRE O CONTEÚDO VÁRIO...
SÃO APENAS OUROPÉIS:
UM VERSINHO SEM FADÁRIO,
UM CORAÇÃO SOLITÁRIO,
UM ERMITÃO SEM BURÉIS...
MAS EU RESPEITO MEUS FILHOS,
QUALQUER QUE SEJA A MENSAGEM
TRANSMITIDA POR ALGUM...
POR ESTRANHOS OS SEUS TRILHOS,
POR MAIOR SEJA A BOBAGEM,
NÃO PONHO FORA NENHUM...
VIÁTICO I (23 ago 79)
Tu me estimulas tanto e sei estou contigo,
Mesmo quando me encontro em um estranho abrigo:
Mesmo beijando a outros, eu sei que estás comigo
E somos um do outro, sem pejo e sem remédio!
E sei que te estimulo, recalcitrante embora:
Querias ser mais tu, igual que em teu outrora,
Mas esta absorção que sofres nesta hora
Te enche de inquietude, sem desvaziar do tédio!
Nem vês que não precisas lutar contra o aguilhão,
Nem fazer pose alheia, senão teu coração
Mostrares para mim, com dores e desejos,
Coragens e fraquezas, lascívia e pundonor,
Que tanto se assemelham a meus ideais almejos,
Que emergem dentro em mim, qual implosão de amor.
VIÁTICO II (11 jun 2010)
Sei bem que tu és minha, por menos que admitas,
por isso, justamente, me buscas e me evitas;
embora, em vias traversas, a teu amor me incitas,
por nada deste mundo confessarás o teu...
Quiçá seja maior, quem sabe, que o que sinto;
talvez por isso mesmo, amor maior eu pinto,
sabendo, lá no fundo, que num ardil eu finto,
tentando exagerar, bem mais, qual seja o meu...
Por certo bem o sabes, por isso me estimulas,
enquanto permaneces em mil e uma negaças,
buscando alhures outros, à cata de confiança...
Enquanto apenas mordo, em singulares gulas,
essas promessas leves que, às vezes, até faças,
negando, enquanto jogas os fios de uma esperança.
VIÁTICO III
São lânguidos olhares, à guisa de alimento,
com que me estendes oco o pano de um farnel:
se algo busco nele, somente encontro um gel,
que me lambuza os dedos, no crime de um momento.
E insisto em procurar, em magro julgamento,
em meio aos favos secos, vazios de todo o mel,
caserna abandonada, que um dia foi quartel,
qualquer sucesso espúrio, permeio a impedimento.
Viático bem pobre ganhei para o caminho,
que é estreita e dura a senda até teu coração,
buscando fruto à margem, senão, morro faminto.
Embora eu só quisesse ganhar o teu carinho
e fique a dedilhar as cordas da ilusão,
sabendo quanto é inútil mostrar-te o amor que sinto.
COLEGA I (31 JUL 79)
Estranho é que precises de pretextos
Para falar comigo -- não devias!
Falar diretamente poderias.
Qual fala o coração sagrados textos,
Diretamente à alma, de ternura
O gesto inteiro; a mente, mais teimosa,
Se rebelando, querendo ser dengosa,
Mortificando, em ato de amargura
Sua própria chance de tornar ditosa
E mais plena sua vida, deleitosa,
Nesta certeza de se achar presente,
No fundo claro e puro de outra mente,
Em compreensão total, feita tragédia,
Que toda a dor não passa de comédia!
COLEGA II (13 JUN 2010)
Contudo, algo te leva a precisar,
afetando indiferença -- não devias!
Falar sinceramente poderias,
sem por trás de pretextos ocultar
a verdadeira razão do contactar,
que te envergonha, enquanto te iludias,
que eu mesmo, gentilmente, tuas folias
não pudesse facilmente decifrar...
Todavia, os pretextos permanecem,
enquanto o tempo passa mais depressa
do que ambos gostaríamos passasse.
E quanto teus pretextos te fenecem,
não há mudança que a solidão não meça,
nesta espera que queremos acabasse.
COLEGA III
É assim que permaneces afastada
e buscas outros alvos - não devias!
Eu já conheço bem as tuas manias
que te fazem ficar ensimesmada.
Enfim, eu te queria era abraçada
somente a mim, em todos os teus dias;
os interesses a que te permitias
para mim mesmo não representam nada.
Assim, eu acabei por me afastar,
igual que tu fizeste, na esperança
de que sempre eu estaria à tua espera.
Mas há limites para um aguardar,
que nunca trouxe o tipo de bonança
que ao longo de minha vida mais quisera!