A CONFISSÃO DE UM BEIJO (Falência) & MAIS
FALÊNCIA
Quando a encontrei, a outro pertencia
De corpo e alma -- e como havia sofrido!
Por ser sincera e por ter pretendido
Que ele aceitasse em calma a sua agonia;
Porque ela percebera, no inconsciente,
Que àquele homem que tanto se entregara
Não era verdadeiro e que julgara
Dominá-la poder... indiferente.
E assim buscou numa experiência um beijo.
Para matar saudades de um desejo
Que ressumbrava das brumas do passado;
E ao revelar, tremendo, a seu amante
O que fizera apenas num instante,
Tudo perdeu que havia conquistado.
JOVENS DE ROMA LXVII
OGULNIA
AINDA TE DESEJO, A CADA VEZ
QUE PENSO
EM COMO ERAS DISPONÍVEL
NO PASSADO;
SINTO-ME PURO EM TAL
CAPRICHO ALADO,
AINDA UIVANTE DO SENTIMENTO DENSO,
QUE ME ESFOLAVA AS NARINAS,
NESSE IMENSO
DEDILHAR DE MEUS DENTES, COMPASSADO
NUM REBRILHAR DE ARGILA, CONSAGRADO
AO PENSAMENTO VÃO E QUASE INFENSO.
SOU MÁGOA DE MIM MESMO, MEU FANTASMA,
QUE SOMENTE EM OUTRO PLANO
TE POSSUIU
E TEVE O PRÊMIO NEGRO
DE TEU VENTRE.
POIS NESSE PLANO, TÃO SÓ A MENTE PASMA,
POIS O GRITO DE AMOR NÃO MAIS OUVIU,
NO IDEAL MOMENTO NO QUAL EM TI
ME ADENTRE.
A FILHA DE APOLLO XXIII
Não vejo mais o rosto de Calíope,
coberto agora de vegetação,
entre a janela de minha habitação
e os canteiros, que minha vista míope
mal pode divisar: sua tocha ergue,
por entre as flores destas trepadeiras:
bela-emília, sete-léguas em esteiras
e a buganvílea, que a floração soergue.
Por entre hibiscos, agora em movimento,
entre prímulas e íris, reverdece,
como se fosse Flora, em seu portento...
Mas é somente uma estátua de cimento
e meu amor apenas reconhece,
se aos ouvidos minha voz soprar-lhe o vento...
A FILHA DE APOLLO XXIV
Eu sinto que minha virgem tão fecunda
só busca em mim parceiro ocasional;
não que outros possa ter, pois, afinal,
quando me busca, de paixão me inunda;
mas quanto a mim, tal emoção profunda
não surgiu nunca, em seu fragor mortal;
eu a desejo, é certo, mas total
não é a força airosa de iracunda
ansiedade, que me volta para ela:
eu sei que não é minha, a si pertence
e, por mais que me queira, dadivosa,
quer mais a seus desígnios; e cancela,
nessa busca de si mesma, a quanto pense
sobre uma entrega absoluta e generosa...
CANTO INDECISO XXX
a LIBERDADE é muito relativa:
depende muito da POSIÇÃO social;
a IMPOSIÇÃO do grupo é bem real;
de nada adianta a INDEPENDÊNCIA altiva.
a liberdade não é o que PARECE:
depende muito dos MEIOS que se têm;
quando MAIS forem, nos prenderão também,
nos laços progressivos do INTERESSE.
e a liberdade depende da INSTRUÇÃO:
quem sabe mais, mais sabe que NÃO PODE:
tudo ao CONTRÁRIO do que em geral se diz.
não existe nem sequer no CORAÇÃO:
ninguém ama QUEM quer, por mais que rode
na longa ESTRADA daquilo que se QUIS...
CANTO INDECISO XXXI
e nem sequer somos livres de ESCREVER
versos de AMOR ou sobre RELIGIÃO:
a TROÇA e a ZOMBARIA exigirão
os seus DIREITOS para nos conter.
e nem EU tenho o direito de ESCOLHER,
quais TEMAS hoje À TONA me virão:
quer um rasgo filosófico ou PAIXÃO
irão me ATRAVESSAR, porque deter
eu não posso tal IDEAL que me impulsiona;
são meus escravos SENHORES temporários;
a caneta que EMPUNHO é que me empunha.
quando o poema sobe e se DETONA,
sou ESTOPIM e FOGO e multifários
os DESEJOS com que o verso ME rascunha.
CAMBIANTE
Retraído o farol, o mistério se apaga,
Na escuridão total de atroz revelação,
Onde não mais reluz o ardor e a exaltação
Da delícia/incerteza que nalma a carne alaga.
Quando a noite se esvai, as cores se retiram
(E surge a escuridão servil da luz do dia,
Desfaz-se na ilusão o sabor de nostalgia)
Que nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.
Que as cores da alvorada são cores de incerteza,
De rosicler fingido, que esbate nessa usança
E apaga o verdigris do sonho e da esperança.
E assim afirma o ideal calor da mór beleza:
Só vive na poesia, só tem do amor o açoite
Quem cores pode ver na mais escura noite.
ESSÊNCIA
Mortal esse aroma que o vento trescala:
Desnuda em minhalma um sabor de arrepio,
De suspiro e deleite e de um leque arredio
De emoções e sentidos que a mente avassala.
Mortal é o perfume que vejo nas palmas,
Sulcadas de traços de um fero destino,
Sensuais na assunção de um total desatino
E portanto intocadas da angústia das almas.
Mortal é o perfume e apenas um toque:
Essas palmas se esbatem e estrugem a sós,
Ovacionam tecendo estridor de cipós
Que outralma aprisionam no estranho berloque,
Da busca da glória na mente perdida
E no ardor da vitória na carne auferida...
RECORDAÇÃO III
Um só tremor ainda, umedecido,
Um latejar de sangue, um estertor,
A boca muito aberta nesse amor:
Os dedos a encobrir grito contido,
Mas que se escapa enfim, pelas narinas,
E a mão se afasta e a língua se revela,
Se enrola contra os dentes, na procela:
Prazer e dor, em lutas peregrinas...
Os lábios tensos como é tenso o ventre,
Os olhos cintilantes e mortiços,
Enquanto o orgasmo o corpo inteiro adentre;
É luminosa a noite da paixão;
Os anos mortos ganham novos viços
E as almas... se estilhaçam num vulcão.
RECORDAÇÃO IV
E depois para a noite, o rosto no portão,
As pedras lisas e retangulares
A palmilhar, no ventre as singulares
Memórias de outro ventre aberto então,
Por longo instante breve; e a brotação
Se faz fecunda, por entre os tumulares
Comprimidos de hormônios perdulares
Que extinguem num massacre a multidão
De todo aquele esperma expectante,
Que se dispõe a morrer, no mesmo instante,
Pela esperança de uma só ovulação;
Mas que perecem todos, massacrados,
Pela morte do óvulo arrastados
Para o estertor da raça em extinção...
ESVAIMENTO
a morte é para todos; já o Amor
é escasso como o sol da Meia-noite;
como é comum ter da paixão o Açoite,
tanto mais raro e puro em seu Candor
esse infletir da alma, esse Pendor
para outrem ser apenas, esse Afoite
em tudo partilhar, esse Tresnoite
a cada vez que olha em Derredor
e não se encontra o rosto Bem-Amado,
não por ciúme vão ou Insegurança,
não por temer que amor alguém nos Tire;
mas por que o coração fique Aleijado
quando está longe de nós esta Bonança
e a própria vida então de nós Retire.
RECORDAÇÃO V
Foi breve o gozo apenas; e a seguir:
"Não deixes nos lençóis tua lava branca;
Já derramaste em mim; agora, estanca,
Chega de cinza e enxofre -- de partir
A hora se aproxima, a noite é breve,
Lança-te já àquela que te espera,
Não fiques a sonhar, na triste espera
De quem tudo a perder doido se atreve."
Mas, apesar de quanto a mim dizia,
Vulcão fervente sob a cinza ardia,
Pronto a explodir em nova erupção;
Porque não tinha a dar só lava branca:
Na exaltação em que o amor se estanca
A mente se faz lava; só é cinza o coração.