VOLUTAS / TRIGRAMA / CRISOPRASO & MAIS

VOLUTAS I (9 MAI 79)

Preciso de você, não há negá-lo,

Mesmo que force a própria natureza,

Mesmo que negue a mais veraz beleza,

Preciso de você, meigo regalo

Dos sonhos meus, de amor e desespero.

Preciso de você todos os dias

Perto de mim: que as horas fugidias

Não se evolassem tanto como espero.

Preciso de você: não longe, apenas,

Entrevista num verso e num suspiro,

Acarinhada no sonho que respiro...

Mas junto às minhas, tuas mãos morenas,

Teu peito contra o meu, nesse desejo

De me estreitar perpétua no teu beijo.

VOLUTAS II (14 JUN 10)

Preciso de você, preciso ainda,

Seja qual for o nome que hoje usas,

Seja qual for o rosto das escusas,

Qualquer que seja o olhar de fé infinda.

Preciso de você, que seja a linda

Voluta de um fanal de esguias musas,

O descaso dos dias que me abusas,

A expectativa de tua futura vinda.

Preciso de você e nem sei quem és,

Quem me provoca tão grande precisão,

Não mais do que um perfume farejado.

Em tuas mãos de vento, velhas fés

De que ainda existe o meio coração

Que no meu possa ser recolocado.

VOLUTAS III

Preciso de você, que coisa tola,

Esse gosto de drusa cristalina,

Que se parte, em rachadura fina,

Impulsionada por cansada mola.

Preciso recobrar a antiga cola

Que um coração soldava, em parafina,

Com outro coração da mesma sina,

Na imaculada bênção dessa estola.

Variadas cores têm as mãos de antanho,

Enquanto a teia seu cristal rompia,

Enquanto os rios subiam à jusante...

Mãos multicores do meu velho ganho,

Condensadas em incenso delirante,

No derradeiro vapor da nostalgia...

TRIGRAMA I (21 AGO 79)

sentamo-nos os três, no solo úmido e arcano,

em tarde domingueira, tratando alheio assunto,

do quê, nem interessa - motivo já defunto;

pretexto nos servia: tão só calor humano

buscávamos os três... palavras hesitantes,

testando em sutileza, tateando levemente,

sondando aqui e ali, até que, de impaciente,

eu abordasse enfim, em termos fulgurantes,

o mesmo tema antigo, que a nada equivocava,

tomasse a iniciativa e aos rostos que mirava

unisse ao meu em beijo, sem outra dilação.

e o círculo fechou-se, depois de tanto tempo

e o tempo suspendeu-se, em triunfal momento

de tanta alacridade revolta em escuridão!

TRIGRAMA II (15 JUN 2010)

que o tempo assim passasse

e o fato mal lembrasse,

que nomes esquecesse de rostos em botão,

que o momento embaçasse

bem fundo ao coração,

que a lembrança se fosse

e a mágoa se apagasse...

que os versos momentâneos

agora eu encontrasse,

que ao peito fulgurasse a tal celebração,

que amor a três, em beijo

de santa exaltação,

que à mente, num relâmpago,

de novo retornasse...

que tenham esquecido, igual que eu apaguei,

que só me lembro agora o então que registrei,

que, caso não grafado, oculto ainda seria...

que tal amor sem filhos, em soneto fecundei,

que anos me olvidasse de tão mimosa orgia,

que não se repetiu, por muito que eu queria...

TRIGRAMA III

ribomba do passado inteiro o sentimento,

essa lembrança virgem, oculta ao cerebelo...

como pude esquecer momento assim tão belo,

que a mente embalsamou em puro linimento?

e vejo no trigrama escrito em tal momento,

em termos pretenciosos de lágrimas de gelo,

registro e ocultação de meu completo zelo,

sabendo-o irrepetido, talvez de acanhamento,

talvez porque soubesse que para mim, valeu,

bem mais que para elas o encanto que passou:

cada uma seguiu por rumo separado,

quiçá até fingindo que nada aconteceu...

mas como esse trigrama a mim mesmo marcou,

que o pus no coração, em quarto bem fechado!

CRISOPRASO I (21 AGO 79)

Que estranho logo agora, nos versos que pratico,

Não me esteja a estender nem tampouco entendendo,

E que sejam tão débeis eu quase não compreendo

Os sentimentos puros que no papel indico...

Porque, de fato agora, sem sombra de ilusão,

Haveria motivo, passada a anestesia

Em que a alma, inebriada por singular orgia,

Deveria estourar de ardor e de emoção.

Depois de tantos meses, de finda a longa espera,

Que tenha tal certeza que o duvidar pudera

De mim arrepelar, num gesto de meu braço...

E, no entanto, é a certeza que se faz mais elusiva,

Pois mesmo confessando e em beijos tão lasciva,

É qual mercúrio argênteo, esquiva a meu abraço...

CRISOPRASO II (20 JUN 2010)

É qual mercúrio argênteo, esquiva a meu abraço

esta canção sutil, que a alma me incinera,

este canto vivaz, que a mente deblatera,

qual canto marginal, que pela estrada passo...

A vida é multicor, em multifário laço:

é gradação de cinza o cântico da espera,

é sonho infravermelho o canto de uma fera,

mas ultravioleta o canto que hoje faço.

A vida repassada a limpo, qual arco-íris:

em tons arrevezados, translúcidos, em pares,

o que era azul se mostra em grãos acarminados.

E pouco importa, afinal, que a ampulheta gires:

as cores se transmutam em sons complementares

e a púrpura emurchecesse em tons amarelados...

CRISOPRASO III

E a púrpura emurchecesse em tons amarelados...

(não passa de cinábrio o antigo crisopraso:

do meu soneto antigo, enfim, venceu-se o prazo,

já brancos os cabelos um dia avermelhados.)

A cinza polvilhou-se nos olhos esgazeados:

há algumas rugas, leves, de que nem faço caso;

a boca ainda é a mesma, o olhar talvez mais raso,

sem o brilho luzente dos beijos compassados.

E ao redor, nada muda, observado a fundo:

a grande maioria aprende raramente

com os fatos da vida e a perscrutar eu fico

até que ponto o fado é apenas deus jocundo

que a mim se manifesta até cinicamente,

que estranho! Logo agora, nos versos que pratico.

LÁPIDES DE AZEITE III

AS DAMAS MORTAS

DO SÉCULO DEZESSEIS

AVÓS E BISAVÓS DAS OUTRAS DAMAS

DAVAM À LUZ EM SUAS PRÓPRIAS CAMAS

E NÃO PEGAVAM FEBRE PUERPERAL

COMO NÃO PEGA QUALQUER ANIMAL

VENTRE EXANGUE VENTRE EXANGUE

AZEITE E SANGUE AZEITE E SANGUE

EM MANGUE EM MANGUE

GERAVAM FILHOS CONTUDO PARA A PESTE

DOS RATOS E DAS PULGAS A INCONTESTE

VARINHA DE CONDÃO DOS CEMITÉRIOS

MATANDO FRADES NOS SEUS EREMITÉRIOS

SE TE SURPREENDE SE TE SURPREENDE

QUEM ALMA VENDE QUEM ALMA VENDE

ENTENDE ENTENDE

PERGAMINHOS X

Será então uma rede esse papiro,

assim gerando as circunvoluções

que hieroglifou por tantas gerações,

o que há de suceder em cada quiro?

Ou no entrementes do delicado giro

já palpitam desafetos e paixões

ou, pelo menos, as predisposições

que marcarão para que lado eu firo?

São linhas permanentes desde o seio,

que não desbotam ao longo da velhice,

que se repetem em tudo quanto eu toco...

Ou será esse meu toque o próprio meio

com que minha marca imprimo, qual se agisse

de tal modo a meu destino pôr em foco?

VEREDICTO I (4 AGO 79)

Tu me ensinaste hoje, deleitosa,

que amor acha ocasião, por mais terrível

que seja a circunstância, por incrível

que seja a vigilância e bem zelosa.

Tu me ensinaste hoje e eu nem sabia!

que ao coração se chega pelo ventre,

que se por outra estrada assim me adentre

só irei me separar da luz macia

que somente em teus olhos nus rebrilha,

na língua entrechocada em maravilha,

mucosa e vaga qual luzir de estrela,

nos dentes cintilando castanholas,

ao som desse arrepio, quando consolas

minha carne no teu ventre, sem contê-la!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 01/06/2011
Código do texto: T3007061
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