TONADILHA 1-12

TONADILHA I

Era tão bom -- e não faz muito -- quando

revolviam-se em mim os sentimentos,

só de pensar em ti. Os pensamentos

eram garças e cervos, ondulando...

Outros havia, nesse imenso bando

-- pintalgado de azul no cinzamento --

pássaros verdes bordeando o firmamento:

cinza a emoção do amor tornado brando...

Era tão bom... O tempo da pungência,

quando teu nome me ardia na garganta

e minhas entranhas ferviam de emoção...

Mas agora eu te vejo, sem veemência...

Gosto de ti, porém, o que me espanta,

sem pular um só bater do coração...

TONADILHA II

Era tão bom - e não faz muito - onde,

só de te ver meu sangue se agitava,

só de pensar minha alma já bailava,

na dança arcana em que o ardor se esconde...

As luzes se abraçavam nessa fronde

e as folhas cintilavam nessa lava:

amor é um rio que largo leito cava,

nessa torrente que não há quem sonde...

Era tão bom... O tempo irresponsável,

em que tudo se derrete na emoção,

esse tempo de intensa brotação,

em que até o lamaçal imponderável,

enquanto o céu mostrava-se imutável,

reluzia em estrelas de paixão...

TONADILHA III

Era tão bom -- e não faz muito, enquanto

tudo que o mundo tinha para dar

eram arco-íris de cetim talar

e de agulhas de pinheiro fiz um manto.

Era um tempo de nuvem -- velho canto,

repetido pelas eras, sem cessar,

sob a luz peregrina do luar,

em que alegria brilhava até no pranto.

Era tão bom... os pinheiros permanecem

e o arco-íris retorna, após a chuva,

mas sobre as nuvens não caminho mais.

Meus pensamentos novas teias tecem,

meus dedos já preenchem nova luva,

enquanto a antiga... perdeu-se no jamais.

TONADILHA IV

Era tão bom -- e não faz muito -- embora

seja o gorjeio das aves estridente,

o marulhar do lago indiferente,

após ser gasta a derradeira hora...

O tempo em que -- meu rosto ainda cora --

em cada pio ouvia amor nascente,

cada arrepio das ondas mais contente

deixava o coração no velho outrora...

Era tão bom -- mas a dor se intersticia,

bem lentamente, de fininho, lerda,

em cada fibra de um velho coração...

E a própria alma lembra e malicia

dessa memória que, hoje em dia, herda,

como aquarela tola de ilusão...

TONADILHA V

Era tão bom -- e não faz muito -- pois

ainda flutuas a meu lado, diariamente.

Não te esqueci, tua imagem é presente,

sei que comigo estará muito depois,

mesmo que a fímbria inteira de nós dois

se tenha consumido totalmente,

que tenha emurchecido inteiramente,

como a relva pisoteada pelos bois...

Era tão bom -- e às vezes, devaneio,

se não seria possível rebrotar,

aquele mesmo incerto velejar

de nosso barco, nas nuvens de permeio;

e assim reflito quanto é doce a mágoa

de ver teu rosto refletido em poças d'água...

TONADILHA VI

Era tão bom -- e não faz muito -- até,

bem mais do que se pensa esvai veloz

o estertor completo desse algoz,

que desdenhar parece toda a fé.

O tempo rega o rápido balé

e a partitura tem final atroz,

como o rio se destrói na própria foz,

quem dá o passo final é nosso pé.

Era tão bom -- será que ainda desejas

que esses dias dedilhados pelo sol

não sejam mais que moribunda aurora?

Ah, bem queria teus lábios de cerejas

nos meus colados desde o arrebol,

até perdermos a noção da hora!...

TONADILHA VII

Era tão bom -- e não faz muito -- ainda

tinha asas de arco-íris persistente

a cada vez que a via e, de inconsciente,

parava o coração, naquela infinda

maravilha dolente. E a chama linda

sem sombra de senão, em redolente

fulgor. Que a mente inteira, dependente,

se entregava ao farol de cada vinda.

Era tão bom -- e eu só queria amor,

como a joaninha, nas costas de minha mão,

ele ondulava, singela margarida

e embora surja agora o amargor,

entesouro esses instantes de ilusão

como o arrebol supremo de minha vida.

TONADILHA VIII

Era tão bom -- e não faz muito -- então

o sol nos dissolvia em seu abraço,

da praia a areia conservava o traço,

o mar detendo em mágico condão...

Eu via em torno uma transformação

da paisagem inteira no mormaço,

daqueles olhos teus, no seu regaço,

se alcantilava a inteira criação...

Era tão bom -- os passos permanentes

conservam-se até hoje na miragem,

que o vento teve dó de desmanchar...

Ah, se me lembro! Grãos tão reluzentes,

mil e uma facetas de tua imagem,

porque eram marcas de teu caminhar...

TONADILHA IX

Era tão bom -- e não faz muito -- o que

revelava seu rosto e só eu via;

não era vida ou amor que reluzia,

era a caução do escasso "para quê",

que nos doara o tempo -- e já se vê

que em tal instante, nenhum de nós sentia

essa noção de que tudo se esvaía

no mesmo instante em que o amor se dê.

Era tão bom -- quando escorria a areia,

sem dominar o tempo, sem saber

que cada instante gozado era o primeiro

e o último também... Que a espera feia

trazia mais em si, no seu correr,

do que o momento degustado por inteiro.

TONADILHA X

Era tão bom -- e não faz muito -- além

de qualquer ilusão ou fantasia,

que o perpassar do tempo nem sentia,

que se esvai no mesmo ritmo em que vem;

que cada instante de idílio a marca tem

dessa cinza atrofiada em nostalgia:

o tempo que chegava já escorria,

levando, zombeteiro, o nosso bem...

Era tão bom! Inconstante como a lua

o escasso instante logo transcorria,

para deitar-se no vasto cemitério,

em que nossa memória dorme nua,

lado a lado com as camadas de alegria,

na suave ceifa de um futuro sério...

TONADILHA XI

Era tão bom -- e não faz muito -- em tudo,

que a relva multicor era safira,

que a magia de seus passos permitira

se transformasse em azul diamante agudo

todo o carvão do peito -- rico estudo,

pastel e óleo emoldurando a lira,

o mundo inteiro movimenta e gira

e a luz de anil se espelha em duplo escudo.

Era tão bom -- seus olhos dupla estrela,

tal como a coloquei num pedestal,

sem me atrever, sem sombra de malícia,

a mais buscar do que somente vê-la,

entronizada além do bem e mal,

fulgurando em meu olhar toda a carícia.

TONADILHA XII

Era tão bom -- e nem passou, também:

os passos nessa imagem permanecem,

de seu cheiro minhas narinas redolescem,

em sonho vasto que não tem porém;

cada detalhe acrescentei recém,

as nuances de cor nunca se esquecem,

os compassos de magia prevalecem,

no congelar do tempo que contêm;

nada passou, porque passou-se tudo;

tivesse mais durado, não me iludo,

se fragmentaria em realidade;

foi por ser curto o tempo desse ensejo

que foi tão longo o tempo desse beijo,

que se recorda para a eternidade.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 03/06/2011
Código do texto: T3011399
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